quinta-feira, novembro 29, 2007

EM NOITES DE CABÍRIA, TODO GATO É FELLINI





Há muito, a vida não é nada fácil. E se algum dia ela o foi, isso deve ter-se dado antes daquela famosa maçã, versão canônica do pagão “pomo da discórdia”, ficar entalada na nossa garganta, embora isso só por extensão, já que o prazer de a morder não o experimentamos na nossa própria língua, sofrendo, contudo, as conseqüências de tal dieta em nossa carne – ou na alma, que, para alguns, é ponto mais sensível.

E já faz tempo também que se podia fazer trocadilho com as mulheres de vida fácil. Não que, hoje, tenhamos, necessariamente, de ceder à correção política – especialmente, àquela que se dá da boca para fora, estando, quase sempre, isentos dessa mesma correção os atos –, mas é que, noutros dias, podia-se, diante da afirmação da facilidade da vida dessas mulheres, acrescentar que de fácil, ela não tem nada, sendo mesmo – ainda sem trocadilho à vista – uma dureza só. Agora, tais mulheres, dedicadas a essa vida, levam-na com facilidade, escolhendo-a até por tal facilitação, para horror não dos moralistas, mas dos esquerdistas (veladamente, loucos para se tornarem, no mínimo, ambidestros, quando não para virarem a casaca, em nome da fantasia de usarem uma, a tal casaca) e dos socialistas (cansados do guarda-roupa monocromático, ansiosos para experimentarem um arco-íris em dia de desfile público de um orgulho qualquer) que, assim, não têm mais tantos argumentos para justificar a escolha dessas mulheres, apelando mesmo para a falta de escolha, o que, enfim, as joga nessa vida (nada) fácil.

Com a glamurização dessa vida, com a diminuição progressiva dos moralistas com ânimo para se assumirem, com os politicamente canhotos caindo de moda, com o vermelho restrito a determinadas estações e, sobretudo, por razões de mercado – uma demanda por vida fácil, que nunca conhece retração, e a visão empresarial que não quer perder a oportunidade de oferecer satisfação aos desejos – as dificuldades românticas de uma dura vida-fácil caem por terra, ainda que, pelas mesmas razões, no mesmo mercado, aumente também a concorrência, nem sempre leal.

Puta que pariu! Ora, as putas parem, e não parem, necessariamente, outras (futuras) putas, sendo mesmo, as putas que parem, moralistas por definição, fazendo de tudo para que os que parem não entrem nessa vida (fácil), apesar de serem justamente elas, ao parirem, que abrem as portas, aos que parem, a esta vida – que nunca será fácil.

Putas de outros dias sonhavam com uma vida dura, só para escaparem à dureza sem opção de sua vida-fácil. As de hoje sonham com maiores facilidades, sonham com guarda-roupas atualizados, renovados a cada estação, e sonham até com um príncipe, desde que este seja de verdade, desprezando o cavalo branco, em troca de um motor-haras (com muitos cavalos), ao contrário das de dias passados, que até se sujeitariam a uma vida dura, se resgatadas, de sua vida fácil, por um sujeito a cavalo, mesmo que fosse, esmaecida a névoa que lhe emprestava a fantasia principesca, somente mais um peão, nesse jogo de casas fixas, pouca mobilidade social e em que um dos poucos prazeres, comuns a peões, reis e (alguns) bispos, é recorrer ao mercado de vida fácil.

Putas, agora, escrevem livros – e, coisas do mercado, vendem. Putas, agora, dão palestras – e, pasmem, a uma platéia de homens (e mulheres) de marketing. Putas, agora, arrependem-se da vida fácil – e, acreditem, encontram farto mercado de piedosos querendo mudar de vida, nem que seja para, vida mudada para melhor, usufruírem as delícias do negócio de vida-fácil. Putas, agora, dão conselhos – mas, renovadas, não o fazem de graça, mas, forçando a maquiagem na graça, dão-nos, só se muito bem pagos. Putas ainda dão (isso não muda) filmes, mas o que se vê ou é uma vida-fácil dura, o que é duro de engolir, nos dias de hoje, pouco verossímil, assim, ou é uma fácil vida-fácil, ainda inverossímil, dada a facilidade com que, nesses filmes, elas engolem de tudo.

E nós que sempre pagamos por um cantinho escuro onde possamos, sozinhos ou em grupo, saciar nosso prazer, em salas de cinema que, há muito, são um bom negócio, ajudamos a manter esse mercado de vida – seja fácil, seja difícil–, e não temos porque nos sentir culpados.