quinta-feira, dezembro 20, 2007

O CAPRA DÓCIL









“Lembra-te de que nenhum homem é um fracasso, se tem amigos”
(Palavras de agradecimentos de Clarence, anjo então de segunda classe, apesar dos seus 293 anos, ao ser, enfim, promovido ao primeiro escalão celestial, ganhando,assim, seu tão sonhado primeiro par de asas.
Em “It’s Wonderful Life (A Felicidade não se compra. EUA, 1946))




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Baixemos à terra! a esse nosso mundinho de cinema!...
Para o próprio Frank Capra [este é] “não só o melhor filme que já fiz, mas também o melhor filme jamais feito, por quem quer que seja
[1]: então, que seja assim! seja feita a sua vontade!

Porém, como há mais mistérios entre um bom roteiro, verossímil até, e a vida, ainda escrevendo-se(-a), por mais que pareça inicial, do que um crítico, por mais atento, é capaz de se dar conta, o filme, o tal melhor do mundo, passou longe do estouro de bilheteria. Mas quem lhe assistiu, como esquecê-lo? – e não se trata de uma nostalgia típica do Natal, como ler os contos de Dickens, negando as (nossas) semelhanças avaras com Mr.Scrooges, simpatizando com sua reviravolta, espécie de esperança inconsciente que guardamos em relação a nós mesmos.

Se Deus existe “verdadeiramente” e não passa (sempre “em cartaz” como gosta de estar, apesar de não se Lhe conhecer a face célebre), talvez tenha sido incriado, talvez tenha-se criado a Si mesmo, à imagem e semelhança de Capra, embora a história do mundo, deste aqui, seja um filme bem diferente, sem todo aquele otimismo um tanto ingênuo - se é que é possível haver qualquer otimismo, em qualquer dose, sem uma boa contrapartida de ingenuidade -, ainda assentado, como se num trono primordial, no ideal edênico, pré-maçã.

E vejamos: este, crê-se, deve ter sido o mundo melhor que Ele já fez (o pior fica por conta de Schopenhauer), o melhor que alguém(?) possa já ter feito - e, convenhamos, apesar das bombas, este não é exatamente um “estouro” de mundo, havendo até quem, mesmo com a fita já pela metade, deseje desistir dessa sessão. Apesar de tudo, há sempre os otimistas - e o que seria do cinema, como negócio para os produtores e como expectativa de diversão ou de “lição de vida” para os espectadores sem essa crença num mundo melhor? E há, não neguemos isso, sob o argumento de um bom-gosto sofisticado, certa beleza na ingenuidade que retifica o mundo de feiuras, sem, no entanto, alterar-lhe a forma, redonda na fantasia que dá vida ao que é, “entrelinhas” gerais, uma grande abstração: como não encher os olhos com um pedaço de madeira, agora já tanto apodrecido, que facilmente passaria despercebido diante da nossa preferência por madeiras (mais) nobres, mesmo que compradas escusamente, desde que tenha sido a nossa tábua de salvação, quando nossas esperanças, mesmo que não lhes déssemos este nome, um dia bem fundamentadas, de uma hora para outra, por causa do balanço desses insondáveis mares, ameaçavam ir a pique, tornando-se, no máximo, tempo à frente, uma curiosidade para exploradores superficiais das vicissitudes humanas durante seus mergulhos de fim-de-semana, aprendizes então nesse “aprofundamento" do mundo de alguém, içando-as, mal se as reconhecendo como esperanças, longe o verde original, automaticamente, mas virando-lhe os olhos ao primeiro desconforto, por causa de eventuais semelhanças genéricas (do gênero humano) no curso dessa sua terapia abissal?!

Ah! essa teleologia da felicidade que faz de Capra (quase) um deus! Mas, como todo (bom) Deus, às vezes, ele (Ele) parece, sacrificando o gozo da beleza, perder "Sua" ingenuidade. E todos nós nas mãos Dele! E nós, por que não dizer?, nas mãos dele!... E em que mãos estaríamos melhor?

Aos que (me) responderem “nas mãos do Primeiro (e Único, acrescentam), não chamarei de ingênuos, nem lhes jogarei na face, célebre já ou ainda, por discrição voluntária, no anonimato de uma sala escura, com tela plana e doméstica, oferecendo-lhe “O Mundo como Vontade e Representação (curioso presente para o Natal!), o pior dos mundos possíveis - como se fazer isso não guardasse lá sua dose de ingenuidade! Aos que manifestarem, em resposta, sua predileção por Capra, não ressaltarei seu caráter algo ingênuo (ao meu ver, olhos tão contaminados por escuros (em) cinemascope), formado talvez numa cinefilia solitária e alimentada pelas penumbras de um ambiente que, entre quatro paredes, reproduz o mundo - o pior, o melhor o simplesmente possível, o inacreditavelmente desejado.

Neste mundo, do qual nada se leva (e há um filme que leva, sim, este nome), por que nos apegamos tanto à felicidade, apegando-nos, às vezes, tão-somente, e com garras que não se desprendem, à palavra felicidade, seja àquela que acreditamos como garantida, fruto da Graça (cadê o certificado de garantia?), seja àquela da qual sabemos que não se a pode comprar?

Talvez seja porque, mesmo que já reconheçamos naquele pedaço de pau, boiando, tanto a podridão futura da madeira mais nobre, porque nenhuma é eterna, por mais duradoura, por mais lícita que tenha sido sua autorizada extração, quanto aquela que já é uma realidade, à felicidade, ou apenas à palavra que a traduz, nos apegamos como se nos agarrássemos a uma madeira rija, esperançosos de que ela, sendo nobre de origem (até com o argumento que é ainda mais nobre quanto for mais baixa sua “extração”), nos levará, enfim, a bom porto, mesmo que, olhando em volta, só mares, nenhum aparente farol.

Já houve tempo em que as salas de cinema eram, em comparação com o minimalismo mercantil (antes, isso era menos evidente) de hoje, quase do tamanho do mundo. Então, podia-se entrar nele, no cinema, entrar nelas, nas salas, e, vendo “A Felicidade...” passar, deixar-se ficar, sessão após sessão, infinitamente, para prolongar ao máximo a (própria) felicidade, quase gratuitamente, ao preço de um único ingresso, como se viver assim já fosse uma graça de Deus (quando pode muito bem ter sido uma de Suas melhores piadas).

Agora, finda a doze de “Felicidade...” que se comprou, é preciso sair, compulsoriamente, desse mundo; aparentemente, para, com generosidade suspeita, dar lugar a outro(s), que merecem, dizem os gerentes dessa felicidade, sua dose de felicidade: ingênuos eles ou nós? Vá lá que isso aconteça com “A Felicidade...”, que sequer passa mais nos cinemas, inadaptados, com toda sua tecnologia, ao preto-e-branco de longa duração de felicidades à antiga, mas há outras histórias que nem atraem tanto público assim, não estouram a bilheteria como fazem os filmes que explodem bombas em guerras possíveis neste nosso mundo cada vez mais previsível, ficando a sala, às escuras, “repletas” de uns gatos-pingados, afundados na dureza de suas fantasias sonolentas, vendo tudo sem olhos críticos (o pior dos mundos), içando, num automatismo delirante, suas esperanças ingênuas, de uma beleza da qual sentem vergonha, posteriormente, a ponto de não suportarem mais do que uma sessão dessa sua felicidade comprada.

Se o Natal é indulgente e perdoa nossas ingenuidades, se é manipulador e nos induz a elas, já temos, mesmo críticos, a nossa desculpa para, apesar de enxergamos este nosso mundo como uma sucessão de vontades e de representação (é cinema, afinal!), alimentarmos, verde como é a cor da estação, uma esperançazinha, crendo na força inconsumível de uma madeira que guardamos em nós, corroída no entanto: e se acreditar nos permite dar mais uma braçada nesse mar, num mar em que nunca sabemos se tudo o que falta para o cais é uma braçada ou se esse porto jamais chegará, nademos de peito, sem vergonha de mostrá-lo assim, aberto, exibindo, por extensão, um resto de corpo que eventualmente não esteja em condições de protagonizar o mais novo sucesso do cinema.

Entre o THE END e o AGUARDEM O PRÓXIMO EPISÓDIO, a decisão está entre a impaciência e o cansaço para com essa (nossa) Felicidade...








[1] Citado por Otto Friedrich, em A Cidade das Redes