quinta-feira, agosto 21, 2008

BAT’EU LEVOU











ascarados, no fundo, mesmo que isso seja, essencialmente, algo superficial, somos todos, e não é preciso se fazer um carnaval por causa disso, por mais que alguns, nós também, eventualmente, usemos isso para estampar, na cara de outro, sua insinceridade, mesmo que, então, fique-se constatado que essa (aparente) multiplicidade de eus mal esconde uma singular procura por (um) nós, a ponto de, tomados por tal necessidade, às vezes, um nome mais natural para uma exigência artificial engendrada pela sociedade, enxergarmos um nós onde mal há um só eu, por inteiro, havendo, tão-só, fragmentos de um eu que, combinados entre si, de maneiras variadas, caleidoscópio ao acaso, ao sabor de quem olha, dão a impressão de serem muitos (eus). E é preciso muita atenção, porque mesmo quando há, verdadeiramente, vários eus, isso nem sempre é bastante para que se tenha, ao menos, um nós, nem mesmo um que já esteja fragmentado.

Escondidos – e isso só pode ser “no fundo”, mesmo que não se se enterre no ponto mais profundo do esconderijo – todos nós, se não somos, ficamos, ora saindo, olhando, antes , para um lado, para o outro, acreditando estarmos fora de perigo, sendo que, nesses momentos, é possível que, pondo a cara para fora, estejamos mais escondidos do que nunca; ora nos mantendo no esconderijo e, cada vez mais, aprofundando-nos nessa caverna, sempre na crença de, assim, escaparmos ao perigo, seja este o de, eu convicto de sua própria inteireza, fragmentarmos-nos, jamais retornando esse eu a sua integridade, que pode nunca ter passado de uma fantasia, ou seja o perigo de, já múltiplo o eu, perder essa sua pluralidade, seduzido pelo encanto de um nós que, sendo, rigorosamente, mais de um, dois, ao menos, pode, no fundo (sempre no fundo), ser menor ainda que um indivisível fragmento d’eu.

A eterna fantasia, que não sai de moda, entra carnaval, sai carnaval, nesse entra-e-sai que é típico das fantasias de carnaval, às claras, sem que se julgue necessário esconder-se numa caverna, é de que, tendo entrado num lugar assim, gruta que seja, dela se saia, irreconhecivelmente, amado, mesmo que toda essa mudança de personalidade se sustente numa meia-máscara, colada, precariamente, ao rosto, sempre na iminência de cair – e, como se não fosse suficiente o incidente em si, com as revelações que advêm de queda assim, ainda por cima, reitera-se, com um banal “a máscara caiu”, mais um lugar-comum.

Escorregar – numa versão "camp" – por um poste, de alto a baixo, já que o contrário é uma escalada (na vida) a que poucos é dada, pelo esforço que requer, impondo, como exige a “lei”, uma resistência ao ditado que apregoa a disponibilidade dos santos em prestar seu auxílio para baixo, não muda, significativamente, um eu, apesar do potencial “significativo” de uma imagem assim, ato sob suspeita para quem crê que prova de virilidade inconteste não é descer, escorregando, mas escalar uma superfície escorregadia, demonstrando, porém, e a sua própria revelia de viril sem dúvida, quão pouco conhece, mesmo que saiba muito acerca de postes, inclusive dos “significativos”, a respeito das subidas e das descidas a que está sujeito qualquer um de nós, como um milionário sedutor que vira, ainda que permaneça milionário, um asqueroso mamífero que se disfarça (como se precisasse de máscara) de ave, só por poder voar, ou como um míope ao extremo, que não enxerga um palmo diante de si, necessitando de radar para todos os passos que dá, por mais milionário que seja, não conseguindo seduzir um só espectador, a fim de o convencer de que essa sua vida de morcego pode dar um filme – até, num otimismo de fantasia, com várias continuações.




domingo, agosto 10, 2008

MEU CORPO QUE É DADO POR VÓS






ode ter sido qualquer outra ave, que ainda há muitas pelo ar, qualquer uma, mas prefiro pensar que tenha sido mesmo uma garça para, sobrecarregada essa minha imaginação dada a viagens aéreas, a vôos numa imersão crepuscular, emergindo só com a aurora, sem que eu consiga o que fiz nesse intervalo explicar, planando assim num céu de fantasia (há mais de um, ou isso não passa de “mais uma” fantasia?), a ela – garça, não esqueçamos – arrancar a pena, até agora não mencionada, embora, iterativo em meus arroubos pelos ares, não seja lá muito difícil de se (ora!) “imaginar”, provando que não só eu que dou asas à imaginação, e descobrindo, nesse vôo, que, mesmo sem nos depararmos em cruzamentos, fazemos roteiros semelhantes.

Pensei, sim, num pelicano, pela lenda que o envolve, atribuindo-lhe uma paternidade capaz de levá-lo a uma automutilação para alimentar os filhotes, quando só se fala dos sacrifícios maternos, numa nutrição que, apesar de uma sucção eventualmente mais dolorosa, não é comum que tire pedaços. Preferi, contudo, deixá-lo de lado, até porque já me lancei mesmo sobre eles tantas vezes, com tamanha voracidade, para lhes subtrair penas, aumentando-as talvez, que até poderiam me confundir com um filhote-da-puta, cruel, egoísta, incapaz de buscar o peito paterno para anestesiá-lo, sei lá com que tipo de ungüento tópico, minorando seu sofrimento, se não pela retirada de algumas de suas “penas” (porque, por humana contradição, essa “arrancada” dói), que todos, pais ou não, as temos, uns mais “à mão” do que outros.

As garças, que, aparentemente, em nada se parecem com (os) pais, embora haja, no feminino desse substantivo, sobrecomum no gênero, pais que o são, umas garças, sem desdouro nem para a virilidade deles, nem para o design graciosos “delas”, são aves peraltas, mais ariscas, pareciam-me, então, uma alternativa mais segura, até onde uma aventura dessas pode ser, na tentativa de adquirir minha própria pena: e que não se pense, dando muita asa, demasiada mesmo, à própria imaginação, que faço esse trajeto terra-ar-terra, com todos o riscos inerente a vôos espaciais, apenas para ir ao encontro de um auto-sacrifício, mutilando meu peito só para ter, tão figuradamente, as sensações características de uma paternidade que sequer sobrevoa minha cabeça, sem nenhuma garantia de vir a ser, com o tempo, uma honorável citação, um verdadeiro exemplo de pai.

Mas, não temais, ó corações apiedados deste meu fardo (de penas, e talvez ainda mais pesado quando de penas carentes: só a mão sabe o que é isso!), deste meu fado de escrever (demais – daí a necessidade de tantas penas), quase já a ponto de me tomardes, apiedados corações (oh!), por pelicano rodeado de famintos, tendo de alimentar, com meus dedos, toda essa família de pelicânidas. Não temais! Sei carregar meu fardo, meu fado (e uma letra a menos no fado não altera o peso da carga). O que talvez eu não saiba fazer é (me) dizer sem penas, preferindo, em visual comprometedor, aparecer todo emplumado, mesmo que o preço de tantas plumas acabe por me depenar, tão distante já o tempo em que, mais pelas asas (dada à imaginação) do que, propriamente pelas penas, achava-me um anjo, cheio de uma graça que faria inveja a mais garbosa das garças, longilínea em suas pernas altas, erroneamente confundida, às vezes, com uns gambitos quaisquer.

Hoje, pesa-me a pena de ter de recorrer a uma garça, essa espécie de ave-trocadilho. Pesa-me ainda mais, como se pelicano no auge do banquete que oferece, em si, a outras bocas, sentisse em meu peito calvo as bicadas do fado, sorte que, por mais antiga, é sempre filhote, que as palavras que escrevo sejam, mal dissimuladas, a tentativa de experimentar, por tê-las gerado, com gozo real, ainda que solitário, uma paternidade de metáfora.

Fico a imaginar, com o resto de asas que (ainda) me sobra(m), que, se sou flagrado em pleno ar, perdido num entardecer, a um passo de navegar em delírios, hão-de pensar: esse nunca foi pai!...o mesmo que, possivelmente dizem de um pelicano recém-saído de um festim, peito aberto, filhotes fartos, atribuindo, contudo, ao mesmo, sem poderem, a essa “altura”, dizer, com certeza anatômica, “dele” ou “dela”, que ali vai uma verdadeira mãe, que há-de ter acabado de dar o peito, coberto de penas, à ânsia natural da filharada.