terça-feira, dezembro 01, 2009

CHICO, THE KID















uando eu era garoto – e minha infância não daria um filme, já que suas brincadeiras, então minhas, eram das mais banais, e até meus dramas, de uma vulgaridade sem qualquer toque original –, mendigos tinham lá, nessa utopia chamada de passado, sua posição social, se se puder falar assim de um subdegrau, espécie de vão, um socavão, improvisado em um, aparentemente, inútil espaço da escada. De fato, eram conhecidos, um por um, e mesmo eram reconhecidos, como se um ou outro, mesmo que desejasse isso para si, não tivesse o legítimo direito e usurpar o lugar já conquistado pelos mendigos estabelecidos. E vagabundos também, embora, fora do seu próprio ambiente familiar, poucos – e mesmo assim, a distância deles – se atrevessem a fazer soar, próxima a seus ouvidos, essa vagabundagem de que todos sabiam: e como um mendigo, sempre em busca do que comer, e os vagabundos, diga-se, não o são, necessariamente, também gozava, nesse espaço muito bem demarcado, de um lugar ao sol, ainda que, como convém a sua natureza vagabunda, preferencialmente, à sombra de uma árvore generosa e, ainda melhor, perto de um rio, tão próximo, que baste apenas esticar, sem tanto esforço, o braço, para alcançar a água fresca.

Vagabundos já foram heróis, e não porque fizessem de uma incompatibilidade pessoal, ou estrutural, da própria sociedade, para com o trabalho – esse argumento, em nome da dignidade individual, para o enriquecimento de poucos – sua bandeira, anárquica, sedutora, mas tão-somente por encarnarem uma personagem lírica, livre das convenções, a ponto de poder adentrar elegantes salões com os mesmos trajes, em frangalhos, com que buscava, dia a dia, seu sustento em migalhas esparsas. Não que víssemos poesia em ser pobre, em depender da generosidade, nem sempre sincera, dos outros, às vezes, apenas uma maneira de se livrar do incômodo de mão estendida, mas, em algum lugar, nessa utopia que somos todos nós, mesmo que tenhamos endereço fixo (o que não impede a vagabundagem doméstica), alimentávamos a fantasia de só precisarmos de um único traje, simples e elegante, mutável, a depender da ocasião; de só precisarmos de alimento na hora em que a fisiologia desse seu nada discreto alarme; de não nutrirmos paixão pelo passado, nem adorar, como a um ídolo divino, um futuro sempre incerto; enfim, a fantasia de, como um pássaro qualquer, vivermos, em totalidade, a vida, seja isso muitos dias, seja coisa de dia para a noite.

Hoje, vagabundos primam por um guarda-roupa eclético, recusam o nome que lhes é tão próprio, chamando a isso de incorreção política, preferindo ser tratado por um eufemismo, e até mesmo por, simplesmente, “eufemismo”, que pouca diferença faz, já que não são tantos, mesmo entre os não-vagabundos, que sabem o que isso é, havendo os que acham pura vagabundagem isso de buscar nomes diferentes para uma coisa já tão conhecida. Heróis, propriamente, não são, mas perseguem a idolatria para, depois, fugirem, na dela, mas da perseguição dos que passaram a idolatrá-lo, numa insincera corrida, só para potencializar a perseguição, desejando, ardentemente, que, no meio do caminho, a multidão aumente, pouco importando que esse exército, assim formado, seja composto de vagabundos em geral.

Cartolas caíram de moda (e no seu rastro, quase também rosas que não falam, mundos que são moinhos), bengalas se tornaram anacrônicas, salvo quando o corpo, cansado de vagabundear, ou por não o ter feito no tempo certo, agora, requer essa ajuda sobressalente. Aparecer sempre com o mesmo fato, é como não ter outras histórias para contar, como, por exemplo, alimentar suas história com a quantidade de fatos que abriga em seu guarda-roupa. Andares podem ser aprendidos, dissimulando-se um jogo de pernas engraçado, espaçado, recurvo, por um caminhar reto, coluna ereta, olhos sempre para adiante, e um aspecto de que nada ao seu redor lhe diz respeito.

Mesmo assim, pode haver alguma poesia, algo concreta (por mais anacrônica que essa poesia possa ter ficado) nessa nova maneira de ser vagabundo. Mas, aos meus olhos, sempre mais encantados com a mudez do que com o cinema tagarelado, vida feliz é sair por aí, garoto, quebrando vidraças (coisa que nunca fiz), não tanto por um prazer sonoro nesse estilhaçamento, e mais para alimentar um negócio que vem no rastro: um vagabundo que, em dia de trabalho, oferece, prestimoso e pontual, seu serviço de vidraceiro.

E quem dera um Carlitos para t(r)ocar meu telhado de vidro!



domingo, novembro 01, 2009

A FÁBULA DO (REI) LEONE
















ra uma vez...uma fábula. E não vou, aqui, contar nenhuma fábula, porque sei que ninguém mais dá ouvidos para isso. Houve, porém, um tempo – e o tempo, especialmente, o que já foi, é matéria-prima das boas fábulas, mesmo que, um dia, esse tempo, tomado, hoje, como passado, tenha sido tão presente – em fábulas eram favas contadas, podendo, por certas semelhanças, ao menos, a olhos mais ligeiros, mais interessados na “estória” do que, propriamente, em seus aspectos mais formais, ser tomadas por contos de fadas. Não que nesses dias não houvesse o peso, que sempre existiu, da realidade; do seu império, algo arbitrário, sobre o sonho. O que, então, sobrevivia era a admissão da fábula, como um aspecto da própria realidade, por mais que – realidades, cada qual a sua maneira – entrassem em conflito. Passados esses heroicos tempos, quem ainda se dispõe a ouvir um Era uma vez..., já se mostrando entediado ao escutar as três palavras, exasperando-se, sobremodo, com as reticências a segui-las, enxergando nisso uma história sem fim, diante de suas premências, sejam estas urgências reais ou não passem de uma fantasia escamoteada: porque não nos deixemos, assim, tão facilmente, nos ludibriar, por vezes, a fantasia é, no que tem de mais saboroso, mas sem um sabor que possa ser aprisionado e repetido, segundo critérios mais concretos, mais dura de se suportar do que a mais insípida das realidades sem graça.

Fábulas, em geral, não necessitam, como um requisito básico para sua existência (real?), de um lugar bem definido, interessando mais à fantasia que esse detalhe permaneça em branco, oferecendo assim essa lacuna como um espaço a mais para se fantasiar. Isso de precisão geográfica é coisa de quem faz História, que se vê enredado por documentos, e até documentos que provem a veracidade de outros (documentos), criando, desse jeito, uma teia de registros que mira o incontestável, como um alimento, reconhecidamente, saudável, mas que carece de cheiro, de gosto, de uma textura que desperta olhos, língua, tato, potencializando, para além da sua ingestão, o prazer de comer.

A América – esse remédio genérico para similares mais pobres –, como se saída de uma fábula, já foi vista, e ainda há muitos olhos abertos para isso, como um lugar de riquezas fabulosas: uma gruta repleta de sonhos, mas que exige, idealmente, com muito trabalho, que se conquiste a palavra mágica. E mesmo que o tempo tenha cuidado, como um predador que não cuida de preservar alguma coisa para garantir seu futuro, atendo, tão-somente, a suas próprias necessidades do momento, de desfazer algumas fantasias, outros sonhos sobrevieram, realimentando fábulas, agora, sem paciência pela duração, que não se sabe bem de quanto é, de algum Era uma vez...

Riquezas se renovam: um dia, terra; outro, a conquista do céu – até mesmo, com um tino invejável para os negócios, fazendo da necessidade, nem sempre admitida, de fantasias, uma fonte de riqueza que se alimenta justamente de fábulas: e ainda o são, mesmo quando se mostram com uma dura cara de realidade. No entanto, ávido pelo banquete de agora, acreditando que outros virão, naturalmente, ou crendo, simplesmente, que (nos) basta cuidar do dia de hoje, porque ninguém sabe o (dia) de amanhã, deixou-se de regar as fábulas, as fantasias, os sonhos, tornando-os, até em palavras, uma interferência indevida, e que por isso deve ser afastada, para a renovação das riquezas, sem se dar conta de que, assim, faminto pela coxa da galinha, empenham-se mesmo os ovos de ouro que sequer saíram, sem palavra mágica, senão, talvez, uma onomatopéia dolorida, da gruta da ave.

O sul que somos, fabuloso em ouro, um dia, é quase, hoje, só uma dourada alegoria carnavalesca. O norte, por exaustão, dá sinais de cansaço. O leste – essa fonte de tantas fábulas –, num pragmatismo capitaneado pelo tiranismo da Realidade, derruba suas grutas de sonhos para, no lugar, erguer, em nome da riqueza – essa palavrinha mágica –, grutas, com outros nomes. E o oeste – ah! o oeste de tantos sonhos, tanto para quem, historicamente, lá semeou suas fantasias de ouro, quanto para quem, assistindo a tudo, de cadeira, sem correr o risco de ser ferido por uma das (tantas) balas perdidas, nesse faroeste emocionante, entretinha sua realidade com pepitas faltas, mas convincentes –, por mais que se tente renová-lo, parece, como filão, favas contadas, salvo de alguma fada, extraviada de um conto sem pátria, desejando reviver seus dias de glória, mesmo que nunca fossem as protagonistas, servindo de escada para cinderelas descalças, resolve, com sua varinha, interferir nessa realidade.





quinta-feira, outubro 01, 2009

O MECANISMO EM GOMOS DE UMA FRUTA CÍTRICA















violência sempre esteve debaixo dos nossos olhos. E ainda que isso esteja debaixo do nosso nariz – que é outra maneira, mais olfativa, não, necessariamente, mais, agradavelmente, perfumada, para se dizer o mesmo –, a violência, desconfio (e quanta violência não nasceu “justamente” da desconfiança?! longe de mim, porém, atribuir a uma falta de fé toda a responsabilidade do mundo), está mesmo um passo adiante.

Falando assim, não quero tirar o (meu) corpo fora – apesar de haver os defensores, com, às vezes, argumentos indefensáveis, de que há, verdadeiramente, violências contra o espírito, até muito dolorosas, elas são sentidas, sobretudo, na carne, para além da flor-da-pele –, ao, aparentemente, responsabilizar, por tanta violência, algum atavismo que nos acompanha, recebido por herança (paterna ou Paterna? materna ou de uma má mãe pouco terna?) e sobre a qual temos quase nenhum império, aquele que é indispensável para se a subjugar: e a depender do método de subjugação, isso seria, para pôr-lhe fim, gerar mais violência.

O que afirmo, aqui, precavidamente, sem mão demasiado firme, seja porque me falta autoridade na matéria, seja por me faltar aquela força manual que empresta aos gestos sua impressão decidida, é que essa violência brinca, não estando a ludicidade pedagógica isenta de uma violência didática, na soleira, à porta dos nossos olhos, mesmo que os mais poéticos insistam em deles, dos olhos, falar como se fossem a janela (e não a porta) da alma. Estando ali, está, simultaneamente, com um pé para fora, objetivamente, no mundo externo a nós, e com o outro, subjetivamente, já dentro de nós próprios.

Pode, à primeira vista, parecer divertido, tanto quanto o jogo do ovo-e-da-galinha, disputando ambos, ovo e galinha, pela primazia, discutir-se se somos nós, com nossa violência interna, que geramos a violência do mundo, ou se este (como se no mundo tudo se restringisse, matematicamente, a apenas dois lados da questão), com toda sua violência, é que, entrando-nos pelos olhos, contamina-nos, mesmo quando nos “apreciamos” como tão pacíficos.

De um lado, dispõem-se os defensores de uma violência que é da própria condição do homem, contratualistas hobbesianos, tendo-se, assim, o mundo se ordenado com o objetivo de conter essa (nossa) maldade, expressa, sem muita originalidade, em violências banais, independentemente do seu potencial de magoar, não percebendo, ou não achando ser suficientemente importante para lhes tirar desse caminho, o quando a “ordem mundial” (do mundo, para conter um pouco o ímpeto de minha língua mundana), querendo pôr freios, solta as amarras. Do outro, não raro, caminhando ombro a ombro, os que tomam o homem pela paz em pessoa, uma bandeira branca, aqui e ali, já maculada pelo mundo, mas, primordialmente, bom – o que, em outras palavras, talvez num resumo de que tanto digo, aqui, gastando-as, desnecessariamente, queira dizer que, a qualquer momento, as manchas venham a ser extintas, seja lá qual for a cor que tenham, com o sabão em pó certo (e que só eles, estes que se põem desse lado da questão, possuem – para vender ou para, em nome da fé, dá-lo, de “graça”, o que pode significar um preço alto demais).

Com gosto especial por expressões clássicas, dizem uns que o mundo, com toda sua violência, é uma bomba-relógio, mirando-a (preferencialmente, longe do seu alcance explosivo) mais como bomba, cujo objetivo é mesmo causar um estrago, e menos como relógio, que pode, se não for uma “bomba” (de relógio), indefinidamente, passar o tempo, em rotinas diárias, sendo as maiores explosões um destempero doméstico fugaz.

Com gosto por um silêncio ritual, há os que, admitindo sua própria violência, contando consigo próprio, quase que exclusivamente, por mais que tenha companhia, agem para que, a partir de si mesmos, contendo-se, experimentando na própria carne uma contenção (a outros olhares, uma grande autoviolência), o mundo se liberte da violência.

E é bem possível que um deles, vindo de um dos lados (da questão) e outro, vindo de outro, passem lado a lado e, casualmente, toquem-se, num esbarrão: um, destemperado, age, desproporcionalmente ao leve roçar, com violência, talvez por não estar acostumado a essas eventualidades do mundo, fechado em si como vive; o outro, já acostumado a esses toques, até com mais violência do que esse que, na comparação, foi quase imperceptível, não altera seu caminho, e ou ri de uma violência exagerada para motivo vão, ou, já adaptado, na vida diária, às violências, mesmo desejando conter-se, responde de um modo que chama de “à altura”.

Assim caminha a humanidade – mas, a bem da verdade, aqui, o filme é outro.






terça-feira, setembro 01, 2009

YOU MUST REMEMBER THIS






m dos requisitos mais comuns, e assim, possivelmente, por comprovada eficácia, para a preservação da matéria (orgânica) é que se a mantenha em lugar seco, longe, portanto, da umidade. Então, como explicar que sobrevivam, apesar de já ultrapassados pela inexorabilidade da precária condição humana, eternamente umedecidos, os olhos de Ingrid Bergman?

Esse sujeito, hão de dizer os amantes de um escurinho, referindo-se a mim, tomando-me por espectador, sem, no entanto, a devida longa metragem, comprou passagem para o Marrocos, só de ida, e lá ficou, perdido numa mítica Casablanca, anacronicamente, seduzido por intrigas internacionais (e isso é coisa de Hitchcock), porque, afinal, a senhora Bergman foi muitas outras (senhoras): e – em nome de Maria – é por ela que os sinos dobram.

Digam o que disserem, são úmidos seus olhos – e de qualquer ponto de vista, sempre serão. Não importa a secura que transmitam, nesse fingimento de profissão, lá estará, pendendo, perigosamente, num equilíbrio de mestre, que nos deixa com o coração na mão, uma lágrima, despertando em nós o desejo, para nos livrar desse incomodo cai-não-cai, que ela, de uma vez, desabe, mesmo que isso abra caminho para um rio de lágrimas, sendo que nossa capacidade de espectadores para dramas alheios é muito limitada, gozando-a, com prazer, até certo ponto, pois, passados da medida, tudo o que se quer é já uma boa gargalhada. Porém, numa demonstração de que somos mais do que um falso antagonismo entre sorriso e lágrima, desejamos, com igual ardor, que ela, ali, nos olhos, como que uma bêbada na corda bamba, apesar da iminência, segure-se, como puder, e não caia, pois, afinal, caindo, cai por terra a continuidade do espetáculo, mesmo que isso inaugure uma nova cena.

Atribui-se aos suecos, costumeiramente, pouco sabidos como somos a respeito da geografia alheia, menos ainda da alma estrangeira (e a nossa também pode ser assim, para nós próprios, numa dissociação silenciosa e imperceptível, aos nossos olhos), uma frieza de gelar as carnes mais tropicais. Talvez por isso imaginemos que uma lágrima, em olhos nórdicos, cristalize-se, antes mesmo de dar as caras. E então surge Ingrid, como se nos aparecesse em plena estação do degelo, prometendo, com águas renovadas, em que pese sua salinidade, fertilizar os solos, os sonhos – e todo sonho, ainda que se sonhe com ou em multidão, é um espetáculo solo em que experimentamos, amadores, ser protagonistas; antagonistas, extras, e, o que é mais surpreendente, tudo isso, ao mesmo tempo: eis a beleza do cinema copiada por nossos devaneios!

Pode ser que tudo isso seja só impressão. Que tais olhos, sempre molhados, só existam em meus próprios olhos, e que os mesmos, os dela, a outros, sejam só olhos; até mesmo, olhos secos demais, principalmente, para uma sueca. Mas, se o cinema é uma maneira, paga e dissimulada, de fecharmos os olhos para o que se passa a nosso lado, fecho os meus às impressões alheias, e permaneço intrigado, sem interferências internacionais, numa casa qualquer caiada de branco, com a sobrevivência de olhos assim, imersos em tão longeva umidade.




sábado, agosto 01, 2009

ARROZ (branco) E FEIJÃO (preto): ADIVINHEM QUEM VEM PARA JANTAR!





alar em aristocracia soa tão anacrônico e, para os que gostam de se perfumar com o tão pirateado (e, por isso, já enjoativo) aroma de uma democracia que, um dia, já foi um cheiro mais original, igualmente imperdoável quanto abrir a boca e dela deixar escapar um “castelo”, chegando-se mesmo a se confundir os aristocratas – apenas na ponta da “língua” os melhores – com uma nobreza perdida no tempo ou com endinheirados contemporâneos saudosos de um tempo pré-Liberté, Égalité, Fraternité, ainda que, necessariamente, o pós-isso não tenha alterado, irremediavelmente, toda aquela pré...história.

A democracia, talvez por uma irresponsável “democratização” do nome, permitindo, como justificativa plausível, que se encobrissem suas versões em cópias mal-feitas com o argumento filosófico, vazado em certa teologia (ou o contrário), de que os homens nascem iguais e livres – livres, inclusive, alardeiam os democratas sem noção do que são, para desejarem ser iguais aos...melhores, evitando, porém, por mais que a língua coce para assim dizer, pronunciar a mal-afamada “aristocracia”, a democracia, enfim, se espalhou pelo mundo.

Já a arte foi-se tornando um domínio distante do que é popular, mesmo aquela que, em sua origem, foi concebida como tal, quando tomada por olhos que sempre enxergam algo “por trás”, desconsiderando uma obra, se ela parece dizer tudo, ou pelo menos o que há de mais relevante, logo de cara, tomando-se o poder de comunicação mais imediata de uma obra como defeito congênito.

E uma das formas, segundo princípio tão democratizado, ainda que bem pouco popular, de se reconhecer uma verdadeira obra de arte (as imitações vão-se tornando um empecilho cada vez maior para os olhos apurados), além de sua universalidade, é seu caráter atemporal. Concebida pelo homem, a partir de si mesmo (dos seus discursos externamente democráticos e de suas íntimas aspirações aristocráticas, porque a contradição parece ser um traço comum nessa série de criatura fabricadas na linha de produção de uma divindade (mais popular) ou de uma evolução (mais elitistas, já que sobrevivem os que, mais fortes, são, de alguma forma, os melhores), por universal entende-se uma obra que alcance, apesar de todas as idiossincrasias do artista, todos os seres, ou assim potencialmente. Por atemporal, quer-se entender a arte como capaz de “falar”, com seu jeito próprio de dizer, a qualquer momento, mesmo que entre um momento e outro se tenha passado tempo suficiente para que democracias se virassem em aristocracia envergonhadas; para que revoluções tenham dado um passo atrás; para que aristocratas tenham confundido o povo com a roupa que usam num baile à fantasia, esquecendo-se de tirar a máscara após a festa.

“Aberto” sempre é mais democrático. “Fechado” é mais aristocrático. E quantos populares não anseiam migrar da aberta para a fechada, já tendo feito isso se a assinatura do serviço não fosse tão cara, sonhando com uma taxa mais “democrática”, ainda que tudo isso seja só de fachada, uma em que a TV assume o papel de cartão de visitas!

Surpreendentemente, na madrugada (será elitismo?) da aberta, uma obra, uma are que fala a qualquer um que queira escutar e que despreza o tempo, tomado este como uma pesada cadeia que nos ata a um momento, mal permitindo que nos arrastemos pelo presente: “Adivinhe quem vem para jantar”!

Alguns podem considerar uma contradição – o que prova que sou, apesar dos meus devaneios eventuais de “ser melhor”, que saí da mesma linha de produção que qualquer popular –, que se se lembre, de um filme, sucessão movimentada de imagens, mesmo que não se trate de um filme de ação, justamente...palavras. Dr. John (Sidney Poitier) falando ao pai, num momento de especial tensão entre ambos: “o senhor pensa em si como um negro, eu penso em mim como um homem”.

Demagogia (que é uma forma degenerada de ser democrata) ou lucidez (que pode ser o paroxismo da loucura)?

Hoje, discutem-se as cotas (para os mais elitistas, sempre citando um latim de almanaque: quotas), sentimo-nos inclinados a reconhecer que a diferenciação é a maneira mais justa de uma exigida reparação. Mas, como não ver aí, entremeada, a noção de que não somos homens simplesmente, e sim que continuamos, em que pesem todas as revoluções, a nos enxergar a partir da (sapiência?) de uma caixa de lápis de cor?

A solução? Daqui, ficam as questões, porque não vou tirar qualquer conclusão.




quarta-feira, julho 01, 2009

AO MESTRE COM CArrINHO



Ao mestre ANDRÉ, carinho


ão! Não falo de modo arrevesado, forçando um sotaque ao dobrar um erre (o que seria um erro) onde só há um rê.

Divididos por natureza, fizemo-nos, apesar da mesma espécie, em dois gêneros: aquele que brinca com carrinhos, espécie de carinho genérico que se lhe dá, apostando num conservadorismo que julga que, salvo alguns “desvios”, se o gênero em questão é “este”, então, carrinhos, e não há então como errar; e aquele “outro” gênero, afastados dos carrinhos, a não ser os de bebê, já que o carinho que se supõe mais apropriado são os bebês em miniatura, bonecas de plástico que retificam a divisão, ao tempo em que a prolongam no tempo, favorecendo uma imutabilidade de papéis, a não ser quando as condições mais objetivas de vida impõem uma mistura, até mesmo uma troca de papéis, com “aquele”, talvez perdido seu próprio carrinho num desses desvios da vida, agora tendo de cuidar do bebê.

De bonecas, não falo: deixo isso para Baby Jane (o que teria acontecido com ela talvez nem Robert Aldrich saiba) a tarefa de se fazer representar em plástico, como se miniaturas de si mesma, fabricadas em série, garantissem-lhe uma eternidade – mas sabemos do que o tempo é capaz. E para aqueles que duvidam disso, é só dar uma olhada no que ele fez com Bette Davis, imortal apesar de tudo.

Quanto aos carrinhos, também não falo deles: deixo isso, de bom-grado, nas mãos rebeldes de James Dean, sem lamentar seu fim, porque é assim, queiramos ou não, que caminha a humanidade, por vezes ultrapassando nossos desejos pela direita, sem nos dar a chance de, percebendo a tempo essa manobra arriscada, desviando-nos, ao menos adiarmos o choque que é, repletos de cinema, dar de cara, quem sabe se pela derradeira vez, num The End imprevisível, com a realidade – e a ironia é que isso pode render (e como!) mais um filme.

Falo, no entanto, de carinho, sem que tenha, aqui, havido um erro, uma omissão, a falta de uma letrinha.

Mestres em carinho pode haver muitos, ainda que pese sobre eles a série suspeita quanto à pedagogia que os tornou assim, e justamente numa matéria em que se deve ser eternamente aprendiz, como todo bom mestre que se preza, e que, sem abrir mão, em favor de uma modéstia feita num Paraguai caricato, não se rende ao que já sabe, inclusive em matéria de carinhos, e está sempre querendo aprender, mesmo quando, a olhos vistos, é considerado um mestre no assunto.

Lembranças são uma espécie (não sei de que gênero) de bonecas, com a curiosidade de que são brinquedos não de crianças, mas dos já crescidos, não importando se a lembrança em questão já carece de um braço, se a pintura dos seus olhinhos já está descascada, se os fios de seu cabelo (loiro) sintético já ameçam uma calvície. Lembranças são também carrinhos que vivem a rodar em nossa cabeça, ora chocando-se com outras lembranças, ora desviando-se das lembranças de choques, ainda que das suas quatro rodinhas originais só sobrem agora poucas, mesmo uma apenas; mesmo que o volante seja agora somente uma reminiscência do tempo em que, ingenuamente, acreditávamos ter nossa própria vida nas mãos, naqueles dias de juventude – transviada, como, aliás, deveria ser toda juventude.

Lembranças são, enfim, carinhos: e se não são para quem é lembrando, certamente, é para quem, quando um branco inesperado (ainda que previsível, com o tempo) se estabelece na nossa memória, encontra, como elo com a recordação perdida, um filme qualquer, como aquele com Sidney Poitier: como é mesmo que ele se chama?!...




A PEQUENEZ DOS FILMES DE HOJE





“I am big. It's the pictures that got small.”
Gloria Swanson quote


Especialmente para JOÃO CARLOS SAMPAIO

ão é uma norma, mas, em geral, as escadas são a imagem (e toda escada, arquitetonicamente, tem seus “espelhos”) da ascensão, dessa tão sonhada subida na vida, embora isso dependa do ponto de vista de quem observa a cena, interferindo, aí, sobremaneira, sua subjetividade, já que os degraus (espelho é a altura entre um e outro degrau) que conduzem ao alto, a esse fantástico mundo em que, chegando-se lá, não se tem motivo para preocupações – a não ser, talvez, a de não rolar, escada abaixo –, são os mesmos, sem tirar nem pôr, que conduzem, ou trazem de volta ao chão, a esse patamar – e o termo, aqui, não é preciso, já que patamar é um “descanso” entre um e outro lance da escada, quando os degraus (a subir ou a descer) são muitos – de onde se partiu, acreditando-se já que nunca mais se o veria de novo.

É, sim, uma Norma – e a maiúscula se justifica. É Norma Desmond. É uma velha mansão, dos tempos em que se subiu na vida; hoje, porém, imagem clássica do abandono, da descida, e tão rápida esta que se poderia dizer que se deu não degrau a degrau, mas, ainda pela escada, deslizando-se, sem empecilho no meio do caminho, pelo corrimão. A glória de um dia só resta, confundindo-se realidade e ficção, no nome: Glória...Swanson.

Esperteza a nossa em querer nos abrigar num monoteísmo em que o deus, o único, portanto, tendo sempre existido, jamais morre. Com mais deuses, apesar de um mundo mais animado, com intrigas que, olimpicamente, divertem nossa humanidade de leitores de folhetins, há o risco de um crepúsculo – também este uma imagem que não deve ser vista, por mais belos que sejam os pores-do-sol, como tal, mas como um rolar escada abaixo, ficando no chão só no caso de não haver nada de mais rasteiro.

Ensandecida, Norma, encastelada em si (o mais invulnerável dos castelos, ainda que igualmente o mais precário de todos), cede aos sedutores apelos de uma escada, não resistindo em surgir no alto, no mais elevado dos degraus, quando observada de baixo, pronta para descer, num ato, curiosamente, que representa (representar é toda sua arte, é toda sua vida) um retorno, uma espécie de subida, porque só os tolos ardem de desejo de subir as escadas, como se estivessem indo rumo ao paraíso, pois os mais sagazes, depois de terem chegado lá, ardem de desejo de aparecer, repentinamente, desde que com plateia garantida, no auge desse pódio, para, a seguir, com lentidão estudada, descer, marcando, assim, o ápice de sua ascensão.

E eu aqui, assistindo a tudo isso, no conforto de uma poltrona, como se aquilo não passasse de uma entre tantas ficções que animam de diversões nossos dias, na falta de uma co(o)rte de deuses vingativos, lutando entre si, mal percebendo o que vai a minha volta, na minha mansão de metáfora, no meu castelo de eus, com minhas escadas sem corrimão, mas nem por isso sem possibilidade de uma queda subida, essa silenciosa ascensão, mais rápida do que o rolar, degrau a degrau. Também eu me deixo seduzir, mas não por (a)parecer um deus, no alto, descendo, como se, magnânimo, concedesse, aos mortais ao rés do chão, uma chance de me terem por perto.

Quando surjo, e desço, alimento a fantasia de que, tendo estado tão no alto, lá embaixo, ao menos, vou conhecer os mais reles prazeres, lambuzando-me, sem medo de cair na sarjeta (que já está ali mesmo, no chão), sem temor de assim experimentar um crepúsculo, senão ao meio-dia de minha vida, ainda que às quatro e meia da tarde. Mas, vencidos, ao contrário, os degraus, encontrando-me no mais baixo dos patamares, descubro que se não bastou subir para ter acesso, imediatamente, aos subidos gozos, não é suficiente rolar pela escada para fruir do que a humanidade tem de melhor (ou de pior, a depender do ponto de vista).

Alguns homens fazem sua glória ao quebrar uma norma, mesmo que esta já se ache fissurada, bastando pouco mais do que um sopro para que se estilhace por completo – como se descessem escada abaixo, sob o ponto de vista dos legalistas; outros fazem a sua ao se apegarem, com uma literalidade empobrecida, às normas, não se permitindo engolir, mesmo que por descuido, uma letra (da norma) sequer – como se ascendessem, a cada obediência, um degrau. Eu permaneço no meio do caminho: tendo subido um lance, havendo outro ainda, descanso, já há quase uma eternidade, num patamar, sem saber, ao certo, qual o gênero da minha glória, se é que ela virá.




segunda-feira, junho 01, 2009

GRANDE OTELO E OS PEQUENOS IAGOS







eu nome não é feio: frailty é seu nome. E, como se sabe, sabe todo aquele que conhece (bem) o sempre insondável príncipe Hamlet, “thy name is woman”.

Não digamos, logo, de cara, que isso não é mesmo coisa para se dizer assim, na cara, o que isso significa, mesmo que, com domínio longe da minha debilidade, já se saiba que o que se quis dizer é que essa fragilidade, atávica, tem nome: mulher; que, invertendo a ordem original, seu nome é – coisa feia! – essa fraqueza, predicado indissociável, pelo jeito com que te olham, mulher, os homens: como Shakespeare, Hamlet – e sabemos o quanto eles não estão sozinhos.

Ah! – provavelmente dirá um homem; porque a mulher, se deu importância a algo que se disse aqui, não será condescendente – isso é coisa de antes, de um antigamente que, de tão lá atrás, mesmo que ponhamos a mão, como para proteger nossos olhos de um sol que não há, já não se alcança mais. Hoje, dirão os homens, assumindo um papel de condescendente, sem jamais admitirem que, numa troca, estão ficando, cada vez mais, mulher(es), que não se poderia dizer isso, já que as mulheres – essa (nossa) neocondescendência masculina! – são a própria força: e, a partir daí, enumera-se, numa lista que parece não querer mais acabar, tudo aquilo que parece provar quão fortes são as mulheres, começando, o que prova a falta de originalidade dos machos, com o parto, com suas dores monumentais, tudo em nome da perpetuação dessa nossa humanidade, ainda que as mulheres, por vontade, não sentiriam esse doer, pondo um fim, o que já não é sem tempo, à maldição divina, porque, em que pese alguns encontrarem aí uma contradição ontológica (como Deus pode maldizer?), talvez porque “feito” à imagem e semelhança dos homens, sabemos de onde partiu essa história de (o homem) ganhar o pão de cada dia com seu próprio suor, enquanto a mulher...

Tenho de concordar: é de antigamente! E isso se percebe, de imediato, pelo “thy” elisabetano – da primeira Bete, não da de agora, se é que se pode chamá-la assim, tão século passado como é, ainda que não chegue a recuar tanto, chegando ao dezesseis, dezessete. Thy é seu: e, de resto, nada mudou – mulher, woman, se quiser, frailty é seu some.

Quanto as incontáveis fortalezas construídas pelos homens – se houver, em construções assim, alguma mulher metida nessa história, ou é um “caso” perdido, ou é tão exceção que merece um capítulo à parte, o que, a meu ver, não lhe acrescenta força, mostra apenas uma debilidade construída, e tão bem, que as próprias mulheres, vendo essa obra já de pé, compram-na –, isso, apesar da evidente constatação da força que foi necessária para se “arquiteturar” uma humanidade assim, não exclui dos homens suas próprias fraquezas. Estas, porém, vivem, comumente, tão escondidas, que é de se pensar que, desabada a obra sólida que se crê que todo homem é, ele ainda se mantém de pé, mal se sustentando, valendo-se só da crença e fantasia alheias (especialmente, das mulheres) de que são fortes todos os homens, sua fragilidade ficou soterrada.

Só que o que está por baixo não teve, necessariamente, decretada sua morte oficial: de pé, ainda o homem; debaixo do que dele ruiu, sua fragilidade (ainda) não morreu; ao contrário mesmo: é justamente por está aí, sob os escombros de uma perfeita obra, como se crê que seja o homem, que essa sua debilidade insuspeita vive, e prospera, a ponto de alguns homens – corajosos, admitamos – fazerem justamente dessa (sua) fraqueza a maior obra de sua vida, chegando mesmo a, com os lucros, construírem uma verdadeira fortaleza, se é que a podemos, sabendo como ela nasceu, chamá-la de verdadeira.

Eu, aqui, como Iago – com suas fraquezas bem-disfarçadas –, digo? From this time forth, I never will speak a Word. E para quem, sabedor de outras línguas, em sua modernidade, alerta-me para o never que nunca, em construção do “falar”, deve se antepor ao (seu) auxiliar, respondo, não tão antigo como ela, com uma “realidade” sob suspeita, ao contrário dela, estou sendo apenas elizabetano – de primeira.



sábado, maio 09, 2009

A MÃE DE TODAS AS HISTÓRIAS



ito por mim, parece que alguém me soprou, ainda que, com isso, não se subentenda que, antes do sopro, sendo então este uma consequência, fui devidamente mordido. O fato é que há palavras que o vento se encarrega de levar, sem que se o tenha encarregado disso, como se pondo tal fardo (de palavras – o que, por si só, não pesa menos) em suas costas, partindo dele próprio, portanto, a decisão de levar isso adiante.

Se o vento leva até filmes inesquecíveis, até épicos (e destes já quase não se tem lembrança), até histórias de amor (tanto as que se julgavam inesquecíveis quanto as que nem lembrança deixaram), por que não haveria, as palavras, de as levar? Leva-as. E se o filme – e todos eles, como se não pudessem disso escapar, por mais que tentem uma originalidade, acabam por uma história de amor contar – for, justamente, “Palavras ao vento”, nem é preciso tanto o (próprio) vento se esforçar, bastando, assim, um mero sopro para se levar.

O tempo, com sua linha que atravessa histórias – épicas ou de amor –, quando se junta com o vento... O tempo (é veríssimo), e o vento (sem que haja comprovação acerca da veracidade de sua participação) levaram consigo os aventais: hoje, ninguém mais cozinha – faz experimentações; ninguém mais experimenta, na palma da mão, na ponta da língua – degusta com o espírito; ninguém mais encosta o umbigo no fogão – é-se, com o título de professor, mestre em assim se autoproclamar, chèf.

Não se pode dizer, a bem da verdade, que o tempo (e, eventualmente, o vento) tenha levado embora os ovos, talvez porque se saiba que, etimologicamente, eles são a origem de tudo. Mas levou as mães, lavando as mãos – e não há como negar, por mais mudanças de ar, que o tempo não tenha aí sua responsabilidade, levado como ele só.

As mães, aquelas de avental, com ele sujo, dizendo, com alguma poesia musicada, que a sujeira era de ovo (como se assim limpasse a própria barra), mesmo que seja só, aquela sujeira, o acúmulo do tempo, estas foram levadas. E para se as rever, só mesmo se recorrendo a algum filme, um que o tempo quase tenha levado, desde que não seja aquele do Vento, que nesse não há mães assim, havendo, em seu lugar, as negras, que podem ser mães, para os assados, para encostar o umbigo no calor do fogão, sequer reclamando seu direito a uma poesia que as alce de escravas de alguma mãe a mãe...de alguma escrava – mas, enfim, mãe.

Não sei contar quantas histórias o vento, ou o tempo, ou quem mais se encarregue disso, levou como palavras que tenham sido riscadas. MÃE resiste: e é nisso que se fiam os que sentem saudades de aventais, de ovos, de chinelos na mão. Resistindo, resistentes, as mães, estão garantidas outras tantas histórias, com seus amores(-)próprios, substituindo as que foram levadas.

Mãe – não sei, mas é provável que isso me tenha sido soprado – é como ovo: origem de tudo. E mesmo não sendo nenhuma novidade, pode estar aí a continuidade dos filmes ou, ao menos, a continuação de uma antiga história de amor.


sexta-feira, maio 01, 2009

UM RASGO DE LUCIDEZ NESSA MINHA LOUCURA AOS FARRAPOS



roto riu do esfarrapado só porque este, esfarrapado como é, é justamente aquele que vive, aos farrapos, repetitivo, sem alterar sua moda, não atentando aos ciclos que se alternam, prendendo-se a um único círculo, girando sempre em torno dele, repetindo, quando vê dois quaisquer, quaisquer que sejam esses dois, em situação semelhante, sem que um possa, aparentemente, falar do outro, estando um roto e o outro, a seu ver, esfarrapado, digladiando-se para ver quem estar melhor(?) – se é que cabe uma palavra tão boa, aqui.


Com base em tal raciocínio – ainda que, a essa altura, muitos, sempre atuais na moda do pensar (embora não passem de uns repetitivos), estejam a duvidar de que haja, realmente, aqui, um raio de razão –, nessa lucidez que sustenta os argumentos do roto para rir do esfarrapado, também este, por mais que seus farrapos não nos inspirem (a depender do estado dos farrapos, não é nada agradável se os “inspirar”) lá muita confiança, poderá lançar sobre o rosto do roto, originalmente ou só dando o troco, uma sonora gargalhada, mesmo que se possa considerar que há, sim, diferença entre esse roto – coisa até do acaso, nem sempre se percebendo um rasgo na nossa vida cotidiana – e o tal esfarrapado, pois este, se honra o nome que tem, é uma coleção de rasgos, sem que se possa atribuir tantos rasgões a um mero acaso, não se crendo que não tenha se dado conta dessa sucessão de fendas que se abriram em seu traje.


A questão, talvez, seja demasiado sutil. Um roto pode se sentir, mesmo que só carregue consigo um rasgo, completamente esfarrapado, se considerar que isso é um furo em sua moda integral, enquanto que o esfarrapado pode sustentar que é assim por pura filosofia – moda antiquada! – ou porque, ao contrário do que se pensa dele, vive sempre atualizado, conhecendo todos os ciclos da moda, sendo que o da vez não é outro, senão os farrapos em pessoa: e, nesse caso, quem há-de lhe negar elegância?


Costuma-se, com argumentos de justiça, sustentar que uma disputa equilibrada só se dá quando os contendores possuem força semelhante, armas iguais, e nenhum deles conte com uma prévia graça divina que, há muito, independentemente de sua força (ou de sua fraqueza), de suas armas (ou do seu covarde pacifismo), já está destinado a vencer. Assim, nada mais justo do que um roto a falar de um esfarrapado, ainda que os mais puristas, os que levam a (tal) justiça ao extremo – passo seguro para a crueldade –, prefiram que a batalha se dê entre dois rotos, com os mesmos rasgos, ou entre dois esfarrapados, contando estes com farrapos em igual número, se houver alguém disposto a contá-los.


Se alguém, agora, estiver a falar de mim, tomando-me como roto, que olhe para si, e veja se não é roto como eu, ou até, diferentemente de mim, que só sou roto, um esfarrapado – e, ainda por cima, fora de moda. Caso me tome por esfarrapado, ainda que dentro da moda, que se olhe no espelho para constatar se não é, como eu, esfarrapado também, mesmo que com um ou dois farrapos a menos, ou que, se concluir, em relação ao esfarrapado que eu sou, que é um roto, um que traz somente um solitário rasgão, se este não tiver sido percebido, e se estiver num ponto em que deixe mais à mostra, único, do que todos os meus atribuídos farrapos, é esfarrapado sim, apesar de toda a discrição de sua moda de um só rasgão.


quarta-feira, abril 01, 2009

BABO POR BABETTE: E ISSO É UMA FESTA!

osta a mesa, todos os pratos se apresentavam em postas, num espetáculo que, embora fracionado em porções, mantém sua integridade de iguaria de dar água na boca. São postas de peixe – e são postas de verdade(s); são postas de carne – e são mentiras impostas; e isso segue assim, nesse desfile sem específica estação, até o fim, quando, frutas da época, a sobremesa se faz em compotas. Mas, afinal, que banquete é esse?

Bem, já se sabe que é um banquete, o que é já saber alguma coisa, mesmo que isso, por enquanto, não signifique muito. E se o é, há de ser para muitos talheres: e o melhor dos banquetes pode se dar, velado pela toalha caindo como panejamento de imagem sacra, sob a mesa, transgredindo-se não só a ordem dos talheres, em legítima prata (da casa), como é mesmo de lei, ainda que a prata não seja assim, em ágapes desse gênero, sendo mesmo, em certos casos, sua função principal.

Para o peixe, a colher cujo destino inexorável, se a vida não lhe der sopa, ou sequer uma colher-de-chá, é mesmo afundar em caldas melosas, coloridas ao sabor da fruta e ao gosto do açúcar queimado, trazendo de lá, do fundo, como resquícios do abismo, cravos-da-índia e fragmentos de canela-em-pau, tal qual porções sem utilidade, pelo tamanho de agora, de uma tábua de salvação em tamanho natural e único, podendo vestir qualquer corpo, independentemente do seu porte, anão ou atlético, não se descartando os anões atléticos, até porque, na hora da redenção, desse resgate em alto-mar, de docilidades em trabalhadas compoteiras de cristal Bacarat, salve-se quem puder!, e ninguém há de querer esperar pela renovação do estoque de tábuas de salvação para chegar, enfim, a terra firme, esbanjando ainda uma elegância sem apertos, o que é, aliás, muito justo, e sem ainda folgas em demasia, o que parece injusto com o corpo atlético.

Para a carne, talher de peixe – como se fundamental diferença fizesse, a não ser quanto ao fio da faca, a sua capacidade de, mesmo já estando em postas, seccionar a carne em bocados que enchem a boca, sem ultrapassar o limite de civilidade auto-imposta(s), até se aproximando, perigosamente, de porções tão mínimas, em nome das boas maneiras à mesa, que pode alertar os olhos do anfitrião para um possível erro na escolha do homem nu que serve de roteiro para esse festival de pratos, todos eles retirados de uma carta de intenções escrita em vermelho exangue de um vinho tinto e cujas linhas, passado o efeito do álcool, evaporaram-se.

Pulando, mas sem correr dessa Festa de Babette, sublimando na toalha de mesa e guardanapos bordados em sua alma de linho puro os enxovais de uma cama da qual se foi, após enxovalhos rituais, expulso, apesar da água na boca (com sinais ainda na baba presente no travesseiro) e também nos enxovais de banho em felpudas fibras que não enxugam lá muito bem, vamos, logo, à sobremesa – que, a essa altura, sabemos o que é, restando se dizer, nessa troca de papéis, saboreada com que talher. Se se deu (uma) colher para o peixe, e para a carne de ofereceu um garfo de peixe, daqueles que, quando riem, exibem a falta de um dente, para encerrar essa orgia da língua, sem, até aqui, ter-se recorrido a palavrão de baixo-calão (a não ser que ouvidos mais puritanos considerem assim “um menu” em cuja anatomia não se entrou...em detalhes, não se sabendo, portando, se esse homem nu, com carta na mão, é um anão atlético ou se, apesar da pompa com que é apresentado, em mão, é um atleta em miniatura), comamos a compota, não com o garfo e faca que se crava e se corta (n)a carne: comemo-la com as próprias mãos. Como? Segurando a fruta pelo talo, que passou incólume, mantendo considerável rigidez para um náufrago que viveu longas horas em tacho fervente.

Agora, lambuzados os dedos, antes de marcar com digitais caramelizadas o guardanapo alvo, lambamos, nessa lambança, os dedos, mesmo à vista dos mais conservadores à mesa (não o sendo, igualmente, na cama ou no banho), já que transformamos a premeditada elegância nessa comilança, infantil, de palavras, como crianças ainda não educadas nos rigores exigidos, mas, no fundo, dispensáveis.


sexta-feira, março 20, 2009

Bel.ZEBU ou o ADVO-GADO



anca de advocacia eu nunca tive. Mas, não sei se em meu juízo perfeito, vou, aqui, “botar banca”, bancando o advogado do diabo: e este, para muitos (advogados), é o cliente perfeito, quase, se a expressão couber, um cliente caído do céu – nesse caso, caído sim, e talvez de um céu em que já não se entendia com o Juiz Supremo –, na medida em que, com suas infinitas diabruras, encapetado como só ele, o que não faltam são “crimes”, podendo-se, assim, estender-se o processo pelos séculos dos séculos (amém!), sem contar com os inúmeros recursos (e todo mundo sabe quão cheio de recursos, e de recur$o$ é esse diabo de cliente), postergando, enfim, o tão aguardado juízo final.


A presunção de inocência (In dubio pro reu) soa-nos como uma grande conquista da sociedade democrática, do estado de direito: que ninguém seja considerado culpado, até que se prove em contrário, provando-se sua culpa. No entanto, essa mesma presunção cria em alguns inocentes certa presunção, tornando-os presunçosos, como se, inocentes uma vez, para sempre (amém!) assim, levantando-se a suspeita de que possam ter, sim, alguma culpa no cartório.



É só uma questão de se procurar. Além de paciência, já que o que não faltam nos cartórios, sem contar as incontáveis notas, são as tais culpas, culpando-se, frequentemente, por isso, o próprio tabelião (de notas), quando, nesse processo todo, ele pode ser, sem querer ser presunçoso, o mais inocente de todos.



Se eu disser que culpa todos nós temos (no cartório), ficará no ar, pelo cheiro de “maçã” a se espalhar, a suspeita de um Pecado Original. Se, ao contrário, não podendo apresentar irrefutáveis provas, eu afirmar, como princípio infalível, a inocência, serei tomado, por essa presunção assumida, por um exagerado inocente – portanto, culpado desde já, ao menos, pelo exagero.



Então é que deixo de lado toda essa Filosofia do Direito e, autoconstituído advogado dele, concentro meus esforços nessa defesa dos diabos, ainda que o cliente seja singular: mas não faço isso para provar, em antológica defesa, que o diabo é inocente – porque dizer isso a seu respeito seria desacreditar meu próprio cliente –, e sim para, surpreendendo a todos, reiterar sua culpa, abrindo mão, mesmo com a falta de provas em contrário, da presunção de inocência.


Os mais curiosos, talvez, estejam se coçando para saber o valor dos meus honorários na defesa dessa causa, e de que forma meu cliente me pagará. Alívio para essa coceira: meu pagamento há de vir na forma de uma grande gargalhada, quando o juiz, adaptado aos burocráticos ritos processuais, agindo automaticamente, pedir, com a autoridade que lhe é de direito, que o diabo do meu cliente levante a mão direita e jure dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade: quá, quá, quá, quá! Isso já é muito mais do que eu merecia ganhar.






domingo, março 01, 2009

TUDO DE FACHADA




omo falsas realidades são capazes de criar sentimentos verdadeiros! E isso não é (apenas) coisa de um cinema em que se lançou, com todo o aparato estrondoso de uma estréia planejada para atingir diretamente o alvo escolhido, por mais universal e genérico que este seja, bombas de gás lacrimogêneo, tendo-se antes o cuidado de não se permitir a entrada dos espectadores portando “corriqueiras e usuais” máscaras antigas, além daquelas que já se carregam sempre, elas mesmas carregando-nos, carregados nós já com os disfarces indispensáveis para não sermos, inclusive, reconhecidos nessa sala lacrimejante, estas também carregadas com um potencial de sentimentos sinceros e só à espera de que uma realidade, até falsa, puxe o pino, destrave o mecanismo que mantém concentrada toda a energia de uma granada de mão, dispersando, assim, seus efeitos pelos ares, levando aos quatro ventos não só sentimentos, que, por natureza, são um tanto instáveis, mas a própria sala de cinema, às escuras então, clareando-se pelas conseqüências da detonação.


Não há contradição, em se falando de sentimentos, ao se fazer intervir aí – aqui – um pouco de razão, até porque, se há sentimentos, há também realidades, falsas que sejam. É com (a) razão que se há-de fazer uma objeção, ou duas: como, sendo falsa, uma realidade poderia gerar algo de verdade? e se assim o faz, essa verdade do fato, não sendo uma verdade como se disse, sustentada por uma base real mas falsa, não será verdadeiramente uma aparência, uma aparição fugaz que logo, por conta de um tiquetaque real, vai-se revelar o que “realmente” é, o que é de verdade, ou seja, um sentimento falso, apesar de se o sentir com toda a comoção experimentada com sentimentos, de fato, verdadeiros? E ainda, se o sentimento em questão é verdadeiro, mesmo que então seja o efeito, e tenha assim de vir necessariamente depois, como pode ter partido de uma falsa realidade?


Não! não chamaremos o cinema para nos auxiliar, com seu exemplo, nem sempre dos melhores, de sala à penumbra, dizendo o quanto podemos nos emocionar, verdadeiramente – seja por efeito de gás lacrimogêneo, seja pelo efeito especialmente hilariante de um outro gás –, assistindo a realidades fabricadas (e há fábricas bem sucedidas de “falsidades” em série): e dizer, ainda em busca de ajuda, que a fábrica de sentimentos é inspirada em sentimentos artesanais, manualmente elaborados, feitos um a um, sem que haja dois exatamente iguais, mesmo que se fabrique muitos parecidos uns com os outros!


Talvez devêssemos ficar mais atentos à (nossa?) realidade, e não para contrapô-la aos lançamentos aparatosos do cinema, mas para melhor observarmos que pouca diferença faz, se se sente isso verdadeiramente, que a realidade seja falsa; realidades daquelas que cedem facilmente a uma investigação mais rigorosa: e quem sabe alguma coisa de cinema sabe também o quanto ele é capaz de fabricar chãos, removíveis após as filmagens, bem mais firmes do que aqueles em que realmente pisamos – a falsidade de um terreno não se mensura pela sua falta de firmeza, porque há terrenos sólidos e também os há bastante movediços, sem que isso os faça mais ou menos verdadeiros.


De todo jeito, o cinema será sempre, enquanto puder (nos) emocionar, uma boa fábrica de máscaras em série, desde que, ávida por bilheteria monumental, não queira, ambiciosa demais, lançar uma máscara à prova de lágrimas (ou de risos... lacrimejantes). Assim, querendo ganhar tudo de uma vez, perder-se-á, cinema que é, para sempre.




domingo, fevereiro 01, 2009

O HOMEM ESTÁ NU



s derrotados, mais cedo ou mais tarde, acabam por dar um jeito de transformar, nem que seja somente aos seus próprios olhos, aquilo que melhor sabem fazer - perder - numa grande vitória, mesmo sabendo que, no mais tardar, o mais cedo possível, essa autoimagem vitoriosa restrita, portanto, ao seu próprio ponto de vista, esfacelar-se-á, a menos que supere esse seu olhar pessoal, e atinja o que sempre fora, desde o início, seu alvo primordial: o olhar alheio, como um legitimador de sua vitória, ou de suas derrotas, o que já o faz (a seu próprio olhar) um vitorioso.

Os vitoriosos, quase que assim por natureza, terminam, mais dia menos dia, nessa sucessão de vitórias em que se transformou sua vida, verdadeiro cotidiano nem surpresas, caindo em armadilha semelhante àquela em que caem os perdedores (quase que por natureza) - o que, diga-se, não lhes é nenhuma surpresa, considerando-se que nisso, com o tempo e as repetidas vitórias, em que eles se saem melhor, ainda que, vitoriosos como são (sempre), não haja, à vista, possibilidade de não se saírem bem, ou, para se sagrarem em primeiro lugar, como convém ao que são, saindo-se melhor (ainda).

Vitoriosos, vistos assim não apenas por si mesmos, coisa que até aos perdedores é dado, mas também como ganhadores contumazes aos olhos dos outros - o que é o desejo maior de um perdedor que faz dessa sua "sucessão" (se se pode dizer assim) de derrotas uma vitória -, um dia, dirão, com ar de derrotado, que não há vitória em ganhar sempre, espalhando, em volta, humildade-em-pó, que até pode ser sincera, porém, ocultando de si mesmos a verdade por trás do que dizem: se se ganha, toda vez que se entra no jogo, isso dilui o valor da vitória, na medida em que esta, essência, juntamente com a derrota que lhe é reversa, de toda competição que se preze, torna-se certa: e adeus surpresa.

Mas, acene-se a um perdedor, mesmo que não um que já se vai acostumando a sempre perder, e sim a um que, se não está perdendo pela primeira vez, já deu de cara com vitórias pessoais, sempre esquecidas, quando se encara uma (nova) derrota, com uma vitória, reconhecida por todos os olhos (menos os dos perdedores invejosos), e anunciada, portanto, sem surpresa para ninguém, nem para si próprio, e veja-se se esse perdedor da hora há-de se negar a agarrá-la, só porque já tinha a certeza de que ganharia, de antemão.

Talvez, e não estou plenamente certo disso (sequer me arrisco a palpitar, já tendo experimentado, em casos assim, derrotas sem conta), um vitorioso que não conheceu, em sua vida de ganhos, uma derrota, ou se a conheceu, isso se deu há muito tempo, o suficiente para já ter ficado encoberto pelo esquecimento, ou foi soterrada por uma avalanche de vitórias, fique tentado, diante de oferta semelhante, mas não igual, a largar de mão: e não porque se lhe ofereceu, mais uma vez, uma vitória, além do mais, sem surpresa, como está acostumado, mas porque o que mais almeja é algo que o surpreenda, mesmo que uma derrota, quem sabe se porque está convicto que isso faz parte do jogo, e que, depois dessa, outras vitórias, como sempre, hão-de lhe vir.

Se sou um perdedor que sempre perde, sucessivamente, já não me surpreendendo com isso ou se sou um desses vitoriosos que, exaustos de tantas vitórias, de tanta falta de surpresa, abre um sorriso quando, em fantasia, imagina-se perdendo? Quem me conhece, lendo-me desde o inicio, percebendo, sem surpresa, o que estava por vir, já deve ter adivinhado.




quinta-feira, janeiro 01, 2009

TÔ TÃO CANSADO!...


ecurso fácil, quando não se deseja despender muito esforço (o que, muitas vezes, é difícil, seja porque se rejeita, preconceituosamente, o recurso fácil, acreditando-se que daí não poderá vir, sem o esforço muito, nada que preste, seja porque o esforço tanto é a legitimação de um tempo de sobra que não se quer mostrar assim - um recurso, admitamos, complexo), é associar uma página (ainda) em branco ao começo de tudo: o começo do mundo, o começo da vida, o começo, propriamente, de toda história, partindo-se sempre do princípio de que tudo começa assim, do nada, como se fosse mesmo possível se construir alguma coisa a partir desse material tão instável.

Com o começo do ano, de cada um deles, não importando o quão velha já vai essa história, quantas folhas, um dia, novas, em branco, um nada, aparentemente, tão promissor, hoje, não passam (só os mais nostálgicos ainda passam essas páginas) de um amontoado de folhas passadas, algumas, curiosamente, em branco, o que não significa que estejam novas, apesar do passar do tempo, sendo mesmo, ao contrário, uma espécie de coisa velha ao quadrado, por retangular que seja a folha, na medida em que, tendo-se a ela recorrido, com sua brancura otimista, na esperança de que, ao longo do ano, se a fosse preenchendo, contando, desse modo, umas história, percebe-se, nesse retrospecto, que tudo não passou de um recurso fácil, na tentativa de se autoconvencer de que é assim mesmo que o mundo gira, que os homens crescem, que as histórias prosperam, que o nada se plenifica, reiterando o preconceito contra o menor esforço, o que leva - recurso fácil! - a que se queira, a partir de agora, a começar deste ano, recorrer sempre ao maior esforço, negando-se, por mais que a força do hábito empurre em sentido contrário, a se deixar encantar pelos recursos fáceis, certos, então, de que, mais à frente, quando se olhar para a folha de agora (mas isso não é um recurso fácil, um dos que se jurou não se usar?!), há-de se a ver escrita uma história contada, ou, ao menos, o começo dela. Há-de se ver...se isso vai mesmo acontecer.

O recurso, aqui, pode ser fácil ou não, a depender do quão se recorra a ele, freqüentemente: em tudo o que se escreve, mesmo nas folhas em branco (porque nelas há, inaparentes, muitas linhas), há-de si ver, de ver a si mesmo, seja no tanto que se escreveu, nas histórias que se viveu, seja no pouco que se conseguiu contar, sem que isso se queira dizer que se despendeu quase nada de esforço, fazendo com que os mais apressados, dados aos recursos mais fáceis, concluam que esse é o resultado de se deixar seduzir pelas facilidades, como se ao dizerem isso não estivessem usando de recurso semelhante.

Abandonar as folhas, a idéia de que é preciso a primeira palavra para que a história, lá adiante, se mostre uma sucessão de sucessos, com uma ou outra pedra no meio do caminho, tudo pensado para, com tal empecilho, acentuar os sucessos, que podem não passar de uma inexorabilidade do tempo, já que, afinal, nessa seqüência, tudo é sucesso, tudo é uma sucessão, com o instante a vir tomando já o lugar deste de agora - que, a essa altura, já se foi -, parece-me um recurso demasiado fácil, apesar do esforço que, aqui, despendi. Sendo assim, pelo sim, pelo não, eis a folha, a primeira de uma seqüência a vir, a derradeira da seqüência que se encerra, cheias de sucessos.

Quanto à pedra, fica, como uma carta (uma folha dobrada), na manga, para a necessidade de se ter de aumentar, transformando num sucesso estrondoso, o que era só o passar do tempo.