quarta-feira, dezembro 01, 2010

SOLIDÃO DOGmática


achorro sem dono – porque cão não é uma palavra tão viralata – é uma dessas expressões que evocam uma imagem com tal força que, popular como é, dificilmente encontra comparação num linguajar mais erudito, e mesmo na mais alegórica das poesias.

Cachorro assim é relativamente fácil de ser identificado, embora essa facilidade toda não se traduza num retângulo de metal, sustentado por uma corrente-coleira, trazendo gravado seu nome, ou, talvez, o do dono – o que só aparentemente revela a importância do cão, dada, como se poderá pensar à primeira vista, a preocupação do dono em ser encontrado, no caso de perdido esse seu cachorro: só aparência, pois muito provavelmente é o dono quem quer ser encontrado, independentemente de qualquer cão.

Sem dono, esse cachorro, valendo-se e alguém que lhe passa por perto, mesmo sem lhe dar atenção, até se desviando dele, como se fosse um incômodo, um obstáculo ao seu livre caminhar, e, condicionado a isso por sua solidão, começa a segui-lo. Esse que passa, em geral, não percebe, de imediato, a perseguição, se pudermos chamar assim a um terno acompanhar, crendo que, ao léu, na ausência de um dono que lhe tome as rédeas (seu burro: é coleira!), o cachorro, só por coincidência, está indo na mesma direção, podendo estar (seguindo) indo em outro, que isso não lhe faz a menor diferença.

Mas, alguns trechos vencidos, cão no calcanhar ainda, sem, no entanto, ameaça de mordidas, sabendo-se não ser seu dono, percebendo que o cão não é “de raça”, o que poderia fazê-lo pensar duas vezes, tenta-se, com palavras, livrar-se dele: e raramente são palavras gentis que lhe pedem, por favor, que siga seu próprio caminho.

Insistente o cão, instintivo o cachorro, quem sabe se já vergado sob o peso de outros desprezos, faz de conta que não entende aquelas exortações que lhe são lançadas no focinho, ou até as entende como se fossem um incentivo, como se aquele que então diz tais palavras, por trás delas, não desejando dar essa impressão assim de cara, quisesse mesmo sua fiel companhia. E esse incomodado, quase já a perder a paciência com o cachorro, olhando em torno, achando-se já o centro de uma anedota, como se o cão, ao seu lado, sublinhasse uma característica cômica que, sem ele por ali, passaria despercebida, chegando ao ponto de, mirando um desconhecido, tomando-o por um daqueles que estão prontos para estourar numa sonora gargalhada, apressa-se em lhe dizer, como se lhe apresentasse um prova cabal: esse cão não é meu.

Notar um de nós “sem dono” já não é tão fácil assim, ainda que haja os que, desacostumados a pertencerem-se a si mesmos ou achando mais confortável (para si mesmos) pertencer a outro, não sai de casa sem uma correntinha com um penduricalho com seu próprio nome (ser chamado pelo nome já lhe dá a sensação de pertencer a alguém) ou então com a identificação do (seu) dono, ainda que este, há muito, tenha deixado de o contabilizar como propriedade sua, não se lembrando sequer mais dele, nem de, um dia, ter-lhe posto aquela medalha do pescoço, tanto que nem fez questão de pedi-la de volta.

Será que os cães, como o faro que têm, também sabem observar qual de nós, em nossas andanças que simulam destino certo para camuflarem caminhos ignorados, é sem dono? O que será que sentem(?), quando, sem dono, sem rumo, mesmo sem nos darmos conta disso, aproximamo-nos deles, insistindo, se eles, sem palavras, mas com suas onomatopeias eloquentes, parecem nos dizer “não”, que eles têm já seu dono; “não”, ainda que, mentindo então, sejam mesmo cachorros sem dono?

Só a beleza de uma poesia incomparável, somada à força do riso amargo, mais uma imagem que fala, simultaneamente, ao erudito e ao popular é capaz de juntar cachorro sem dono a um homem sem dono, arrancando-nos gargalhadas que, nos mais atentos, ferem a garganta, provavelmente, por tocar numa corda tensa que preferiríamos manter completamente muda.




segunda-feira, novembro 01, 2010

TOSSIR (hum, hum!) WITH LOVE












uando se quer pôr tudo em pratos limpos, não se considerando, então, que nada há de imoral em pratos sujos, que tal atribuída sujeira não é mais do que a previsível consequência dos pratos, uma vez limpos, que receberam alimento, o repasto que satisfaz (que satisfez) apetites, não se olhando de modo atravessado para essa sua efêmera – por causa do apetite – fartura, diz-se, para se deixar tudo às claras, que é preciso se pôr o preto no branco.

Experiências infantis, ainda que subtons de lembranças pouco resistam, resistindo já precariamente a lembrança das fortes cores primárias, nos mostram no que dá essa mistura: preto mais branco é igual a cinza. Como, aqui, não desejo, porque também eu tenho lá os meus apetites, nem sempre encontrando fartura para os satisfazer, fechar o tempo, pintando nuvens carregadas, preto no branco, assim, não é questão estética, embora tenha-se tornado uma arte a (da) convivência, e não a convivência entre diferentes, quando se tem certeza de que o são, mas, sobretudo, aquela entre, notadamente, semelhantes, em que pese certas idiossincrasias na aparência individual.

A aspiração, legítima, de se “esclarecer” as coisas, sem que isso signifique, necessariamente e a rigor, para além dos mais imediatos limites semânticos, ainda que não se possa fechar os olhos à etimologia mais cândida, um branqueamento artificial da questão, aspiração essa de se colocar o preto no branco pode causar certa apreensão, observável, se não em tremores exuberantemente contestadores, num pigarro que se quer a diplomacia em pessoa, por mais que não seja de bom-tom se pigarrear assim nos salões em que arrastam sua nobreza republicana embaixadores.

Tal hum-hum se torna uma espécie de aviso aos navegantes de primeira viagem, a respeito da inoportunidade de, em pleno banquete em curso, falar-se em pratos limpos, trazendo-se, assim, para a mesa, posta com elegância típica dos grandes salões, mesmo que tudo isso se passe num exíguo espaço de doméstica contenção, mesa ainda repleta de um cardápio que, pela sequência de pratos, dá mostras de aspirar a ser infindável, pratos (já) sujos.

Preto-no-branco, sem que se conheça quem, preto, faça restrições a essa sua primazia, na ordem das coisas, nem de branco que tenha declarado guerra por vir atrás, é um sem-dúvida, tanto quanto pratos limpos são, sem dúvida, mais comumente brancos, uma conversa às claras. E para quem vem insistindo, como eu, aqui, nesses “esclarecimentos”, há de se perguntar onde, afinal, está o cerne dessa questão: no preto, no branco, no preto-no-branco, ou num diplomático e conciliador cinza (com todas as perdas, de uma conciliação, para o preto e para o branco que, assim, são obrigados a abrir mão de parte de si)?

A questão é que, para alguns, não há dúvida: preto há e branco também, não escapando o cinza, aos seus olhos, de também existir; enquanto que para outros não há nada disso, havendo só uma cor única, à qual dão o nome de “homem”, mesmo que isso abra espaço para as mulheres contestarem o fato de, como um cinza, verem-se “desmaiadas”, transfiguradas, de sua cor original (branco, preto, ou qualquer outra cor que seja), num “homem” ao qual se associa, mais facilmente, não o gênero humano, mas, do que há de humano em todos nós, um gênero mais específico.

Para que de uma questão, que sequer foi resolvida, despenquemos, precipício abaixo, numa outra, lembremo-nos da pilha de pratos, sujos, que há a nossa espera. Porque eles sempre existem, quando não na pia – que, apesar desse nome piedoso, raramente está limpa, sendo mesmo sua função reter as sujeiras dos outros –, em algum outro lugar, na forma de dúvidas a serem dirimidas. E com tanto a resolver, para que perdermos tempo com questões de cor?!

Fui claro?!






sexta-feira, outubro 01, 2010

MINIE SAIA E MICKEY MOUSE









antasia não é só um filme de Walt Disney que encantou crianças de outro tempo, encantando, naquele mesmo tempo, quem criança já não era, exercendo sobre estes, cada vez mais, menos crianças (ou mais, justamente, pelo afastamento desse tempo), ainda hoje, um fascínio que só é visto nas crianças, e não nas de outrora, não mais num Mickey, um ratinho esperto, mas num “mouse” que até cria, virtualmente, suas fantasias: coisas do (nosso?) tempo!

Seja qual for ela, sem saber ainda o quanto é fantástico, não se restringindo isso a um fim de noite de um domingo que se repete, semana a semana, ter fantasias, ainda que, quando então se as tem, em idade propícia a tê-las, elas são a (própria) realidade, tempo haverá para se encantar com ratinhos, para os temer, para os esquecer e, enfim, para os lembrar, como a marca de outro tempo: e quando esses dias chegarem, talvez o mouse de hoje já seja, perto da nova tecnologia, a própria fantasia.

Esse universo, no entanto, não se restringe ao rato, por mais esperto que ele seja para dominar a história. Há um pato – quá, quá, quá! – e há um pateta: mas, um pato-pateta, e que, ainda por cima, quebrou a caneca, mesmo pertencendo a esse mundo de fantasia, é uma outra história; o instrumento que toca é outro.

Aparentemente, para quem, já sem tantas fantasias, temia pelo futuro, passar do desenho, cheio de vida, mas nada “animado”, das tiras, dos gibis, para uma (quase psicodélica) animação, entre rugas com Stravinsky, hipopótamos que leveza invejável, flores em corpo-de-baile, objetos que abandonam sua função primordial e, algo kitsche, aparecem num show de talentos, seria como subtrair à fantasia algo de precioso: a própria vida, aquela que, na imaginação, se emprestava, de si, aos inanimados personagens.

Qual nada! Quá, quá, quá! Era como se tudo aquilo, uma vez, no papel, dele saísse, como que por encanto (e não foi por outra coisa, senão por isso que se deu tal Fantasia), avançando, numa multidão de desenhos, para a realidade, sem perda de sua fantasia original, tingindo a nossa, às vezes, tão carente de vida própria, com uma sequência de alucinações: mais seguras (nem tanto assim!) e mais baratas (certamente, sim) do que experiências psicodélicas. Enquanto, por mais anacrônicas que, hoje, possam parecer aquelas cores entorpecentes, aqueles sons estupefacientes, aquelas estupidezes geniais, viagens químicas, sintéticas, sem passar por análises criteriosas (talvez se recorra a elas para, justamente, descansar de tanta análise, de tantos critérios), podem ser sem volta, podia-se, volta e meia, retornar ao cinema, à Fantasia: agora, sequer é preciso sair de casa, embora fantasia assim, permitida, sem ao menos um escuro coletivo para se extravasar os segredos individuais (ainda que isso não seja coisa para criança), não tenha lá a mesma graça.

Há ratos e ratinhos: estes são quase uns mimos, presente infantil, cobaia para as primeiras atenções e para as inicias crueldades; já daqueles (esses ratos!), saídos, como parecem todos, ao esgoto, deve-se manter distância, ainda que, para isso, acabe-se aproximando de um outro, um rato em metáfora, alguém que fantasia (com) crianças e, num clique no mouse... E isso não é desenho animado!




quarta-feira, setembro 01, 2010

FALA, MALUCO! BELEZA?!








ó um maluco é capaz de conceber amigos assim, que são e que não são. Só um gênio, sem parir nenhum dos dois, o que não implica, necessariamente, em não sentir dores em sua criação, é capaz de trazer à luz, a partir de uns amigos irreais, o que não somos, supondo, então, que saibamos (o que nem sempre é verdade) o que somos, ou, revirando essa medalha – e não há qualquer milagre nisso –, relevar, como se lhe apresentasse, ao que não somos, o que somos, sendo que, nesse caso, além de não sabermos o que não somos, também, até esse momento, não sabíamos o que somos, ou o que éramos, porque o tempo passa, e passou, desde que eu, louco sem gênio, me postei aqui, a pensar, a especular, a tirar conclusões, precipitando tudo isso numa torrente de palavras, porque dizer uma “Tempestade” seria já admitir o que não sou, não tendo jamais passado de uma chuvinha passageira.

Desde que um certo (embora pairem dúvidas, até históricas, a seu respeito) maluco juntou, como se convidasse, assim, para a mesma mesa, o ser e o não-ser (e que só os loucos pensam que não se dão), revelando, então, ao contrário do que acreditam os que se deixam impressionar facilmente por aparências ou por contradições meramente retóricas, que se não são amigos daqueles que não se largam, não vivem um sem o outro, mesmo que prefiram, talvez, para guardarem as aparências, simular uma desunião, a ponto de forjarem desentendimentos públicos, o que costuma divertir muito os que gostam de uma boa briga, não tendo outra diversão, senão se regozijar com a (suposta) cizânia entre esse ser e esse não-ser, diversão barata, para o gozo dos que, a ser ver, são o alvo de suas gargalhadas, sendo, eles próprios, plateia ao acaso, o verdadeiro alvo das piadas.

Eu diria mesmo que são amigos de infância: como todos, se é que nos lembramos ainda desse tempo, amigos, uma vez, inseparáveis, até que, em meio a todas as afinidades que sustentam aquela amizade, começam a surgir as dessemelhanças, numa época em que pouco sabemos lidar com as diferenças, considerando tudo o que fuja ao nosso olhar (de) normal como flagrante aberração – em que pese, em criança, não nos ser fácil nenhuma dessas duas palavras: "flagrante" é, flagrantemente, um troca-letras em que, comumente, trocamos o erre pelo ele, não admitindo, contudo, o erro próprio, atribuindo-o, se preciso for, a outro, como se o erro fosse dele; quanto a "aberrações", isso é um monstro, como tantos outros, que invade imaginações nessa idade.

Passados esses dias, já relegados, agora, ao passado, crentes de que já podemos, sem trocar uma só letra, pronunciarmos qualquer flagrante (que engano!), ou já não nos surpreendermos com qualquer diferença, chamando-a, de cara, de aberração (ainda que, “de cara”, muitas vezes, tenhamos vontade de assim sentenciar), brincamos de pensar, de argumentar, de divagar, de especular, de deduzir e de induzir, de, enfim, filosofar: e para isso, não hesitamos em lançar mão desses dois velhos amigos (apesar do tempo, na verdade, não envelheceram, e continuam os mesmo ser e não-ser de sempre), impostando a voz, importando-a, se assim se julgar que causará maior efeito, de outras terras, forçando um sotaque elizabetano, ainda que, no fundo, nem sequer saibamos o que isso quer dizer.

A essa altura, deduzindo de quem comecei a falar, hão de já me ter sentenciado: maluco! Como, afinal, falar assim, chamando-o de louco, a um gênio de primeira – para alguns, o maior?! E daí? É gênio sim, mas não deixa de ser um rematado maluco, sem, aqui, entrarmos no mérito de sua beleza(?)

Só um maluco é capaz de conceber amigos assim...








domingo, agosto 01, 2010

REDISTRIBUIÇÃO DE RENDA










e a ladroagem corre solta, e tantos, com a razão andando em sentido contrário (à própria razão) correm, ou dizem fazer isso, atrás do prejuízo, sabe-se lá para quê, que lucro se pode tirar daí, caso, nessa corrida, chegue-se a alcançá-lo, prejuízo que nem tem (razão) por que fugir, nós, aqui, parados, fazemos o quê?

Correr atrás dos ladrões, tomando-os, com algum acerto, pelo menos, de um ponto de vista pessoal, apesar de tão transferível, pelo prejuízo (que nos dão), mesmo que, apelando para São Silvestre, o santo padroeiro não dos ladrões, mas de todos aqueles que correm, incluindo os ladrões, quando correm, consigamos lhes pôr as mãos, pode significar uma perda de tempo, o que, em outras palavras – e usar outras para dizer o mesmo é perder ainda mais –, só aumenta o prejuízo, embora, no que diz respeito às palavras, sejamos tão pródigos.


Até porque a ladroagem, que só corre (solta) na (nossa) força de expressão, numa retórica gasta, ou não se dá ao luxo de dar no pé, confiante em que não será perseguida, ou se houver alguém em seu calcanhar, pela falta de prática em corridas, uma hora, há de cansar, ou está tão ao nosso lado, que nem desconfiamos de que, à mão, seja, desse modo, possível alcançar o ladrão com tamanha facilidade, engendrando, com razão, o que não elimina a possibilidade de a covardia se sobrepor ao ímpeto inicial (Hamlet parece, para todo o sempre, ter razão: “a consciência (o pensar demais no que fazer) faz de nós uns covardes), toda uma teoria que sustenta a decisão de não se fazer nada: ou quem está ao nosso lado não é ladrão, não é “o” ladrão atrás do qual deveríamos ir, ou é ele mesmo, mas se está assim, tão ao nosso lado, sem nenhuma solidariedade genuína para com nossos prejuízos diários, agir, em tal caso, pode nos fazer perder ainda mais. Então...

Corra, que a polícia vem aí. E nunca se sabe se ela vem atrás da ladroagem e, cansada de tanto correr, sem lucro, ou já acumulando prejuízos demais, preferindo usar o tempo para atividades mais lucrativas, vendo-nos pela frente, para dar o serviço por findo, pegar-nos-á, como se, enfim, tivesse posto as mãos num ladrão. E vai – corra, que a polícia vem! – que, justamente nesse instante, estamos com as mãos cheias de parcos lucros, fruto de uma vida cansada, ou mesmo com elas cheias de frutos, que isso já chega a ser um lucro, quando o prejuízo dá, com assustadora generosidade, em árvore, com galhos baixos de tão carregados, quase com os prejuízos-frutos se oferecendo, de mão-beijada. Ou então...

É chamar o ladrão, contado com sua razão, e fazermos um acordo, uma distribuição dos lucros, ainda que ele fique com a parte do leão: ao menos – a que ponto chegamos! –, não ficaremos sem nada, de mãos vazias. Nisso, porém, há um risco iminente, que nem é o de ficarmos sem nada, já que, ficando ou correndo, o bicho é insaciável, e que é o que, dispondo-nos a tão submissão, virmos a alimentar a vingança. Como se sabe, este é um prato que só se come quando, depois de sopros e mais sopros, ele se revela frio, e, passado tanto tempo, com a vingança já no ponto ideal para ser degustada, até o prato tenha-nos sido levado, para regalo do ladrão que, não tendo estômago tão sutil (embora haja os mais refinados, que dizem até que só roubam para deleite de seu apetite – sabe-se lá qual), comem qualquer coisa: e se deleitam.







quinta-feira, julho 01, 2010

A CARA DA MESMA MOEDA É UMA COROA









ão se mede, nessa nossa quase atávica mania de fazer comparações, uma verdadeira majestade, cada vez, aliás, mais rara, nesses tempos republicanos em que reis, de fato, lançam mão do bem-público, pela coroa que ostenta, embora impressione a quantidade de pedras ali incrustadas, fazendo com que o olhar, encantado com tamanha preciosidade, estabeleça uma necessária relação de reciprocidade entre o número e o peso desses tais quilates e o poder de Sua Majestade: e olhar, tão facilmente seduzido, vem de olhos demasiado amadores para que saibam distinguir, a distância, porque é regra não se aproximar muito da realeza (e esse fosse é uma realidade), uma coroa, de verdade, independentemente das pedras, que seja, então, legítima, tanto pela sinceridade dos (seus) raros brilhantes, ainda que em número generoso, quanto pelo direito de se a usar, sem que se a tenha usurpado, à força, mesmo à força do convencimento pelas palavras, o que não é uma violência menor, apesar de uma possível aceitação da outra parte, iludida, assim, em sua boa-fé pela má dos sofistas, palavras estas de quem portava a coroa, talvez a justificar a imperiosa necessidade de que se dê tal troca, porque, afinal, a coroa em questão, nessa velada disputa pelo poder, se ajusta, à perfeição, à cabeça que ora a reclama, tendo ficado ou apertada ou folgada para aquela que ainda a sustenta – por pouco tempo, se depender “de mim”.

É preciso ter um olhar algo treinado para se dete(c)tar as falsidades que se escondem na arte do reluzente, difícil, então, de se perceber, pelo fato comum de que as pedras preciosas não fazem parte do cotidiano da maioria, súditos mesmo nas repúblicas (em que o público deveria ser “rei”), crendo-se os reais donos do poder, delegando-o, por já não se ser obrigado a genuflexões, à passagem do rei, enganados que se ficou com a postura ereta que se passou a forjar, à custa de algumas dores, para se convencer de que se é, em princípio, como tese, o que manda: e com isso a dinastia progride, fazendo seus sucessores, a ponto de se festejar o nascimento de um novo príncipe, achando que seus olhos azuis são os que melhor hão de nos representar.

Revoltas à parte, às vezes, servindo como desculpa para o poder endurecer, revoluções vigiadas para dar a sensação, devidamente monitorada, de que somos verdadeiramente livres para romper as cadeias, apertando, porém, ainda mais os laços que nos mantêm escravos, as coroas trocam de cabeças, e isso porque elas estão sempre no lugar, enquanto a nossa...sempre a acreditar em contos de fadas, não percebe que o cavalo de pelo branco é só um burro tingido de cândido personagem; não percebe que o príncipe que o monta usa lentes de contato coloridas, esforçando-se para sustentar, com dores, uma postura reta, na intenção de parecer mais alto, mais garboso, mais príncipe, e distribuir sorrisos que mais contentam os olhos, distraindo o estômago e enchendo o coração, além de atiçar a língua a declarar que se testemunhou aquele príncipe nascer, com a predição de que seria o homem que é e que, com tamanho acerto, já se pode prever que seu sucessor há de ser tão belo assim, mal notando o aperto ou a folga daquela coroa, prestes a iniciar uma nova dinastia com olhos sempre, independentemente de sua cor natural, azuis.

O tempo, mesmo que não o vejamos arrastar um manto, tem lá sua própria majestade; e impressiona, ao passar, pela coroa, ainda que sejam falsas suas pedras. Mais sabido do que sábio, sabe bem como fazer de conta que se dobra a nossas vontades, e que todo seu poder, naturalmente, emana de nós mesmos, mantendo conosco esse laço de cetim. E, com isso, domina-nos; vai-se sucedendo, como se quisesse pôr no trono a infinidade de momentos de que é feita sua Casa Real, por mais que ouça dizer (revolução à vista que jamais sai do papel) que ele, o Tempo, com toda sua pompa e majestade, é, simplesmente, imaginário, uma simples noção que não nos sai, sintético juízo a priori, da cabeça.

Enquanto houver tempo – e não há, no horizonte, qualquer perspectiva de que ele deixe de existir tão cedo, tendo nós de continuarmos a nos haver com ele –, o seguimos, à risca, seguindo-o, toda essa invenção (da nossa cabeça, embora tenha sido outra cabeça, que não a nossa própria, que inventou toda essa história), ratificando, assim, sua realeza, ou nos insurgimos contra ele, fazendo a revolução. Mas, como todos nós, por mais republicanos, sonhamos, no fundo (de nossa “descoroada” cabeça), com uma tiara dinástica, mesmo que não nos caiba (tê-la), à perfeição, adiamos nos revoltar contra o Tempo, à espera de vir a tê-lo em nossas mãos. Eu, aliás, estava com ele na minha cabeça até a gora; “agora”, porém, é só recordação...





terça-feira, junho 01, 2010

PRESUNÇÕES DE UM HERDEIRO PRESUNTIVO














omo já nascera (para) rei – príncipe, desde que fora trazido à luz, na ponta da linha da sucessão –, aprendera, ainda numa época em que se ajoelhar diante de uma criança, mesmo que molhando, naturalmente, como um plebeu qualquer, seu berço de ouro parece algo ridículo, embora engraçado para quem ri por trás das grades douradas de sua primeira falta de liberdade disfarçada com spray de ouro, a sustentar em seus ombros frágeis – um dia, trapézio viril para os volteios próprios da idade – o peso da majestade em forma de peças superpostas de tecido denso, tramado com preciosos fios, numa sala contígua ao palácio, longe o bastante da realeza pomposa para que não se contamine a nobreza com a banalidade do trabalho, ainda que fazendo uso de matéria-prima tão pouco cotidiana, mas próxima o suficiente para que se exerça fiscalização direta e se evite, assim, com olhos atentos, que alguns fiapos de tanta preciosidade sejam reutilizados, mesmo que como simples elemento decorativo, nas roupinhas de moleques com pés no chão, até porque quem iria acreditar que aqueles fios que, ao sol, reluzem são mesmo de ouro, vestindo esse moleque?!

Não adiantou que inteligências reais inventassem uma técnica que emprestava maior leveza a essas linhas que urdiam o encobrimento das nudezes palacianas, pois, ao se experimentar a primeira peça feita sob medida, o real piloto de provas se sentiu como que esmagado sob a falta de magnitude que os quilos, até então, garantiam, até porque, diziam os masculinos defensores de tanto peso, já se acostumara, desde cedo, com essa força que se exerce sobre os ombros, junto com a obrigatoriedade (mais uma liberdade a menos) de se manter a postura, com coluna ereta e peito devidamente encaixado numa projeção algo arrogante, mas que agrada aos olhos submissos, ávidos por uma autoridade que lhes alivie, pela ordem sem contestação, o peso de suas próprias decisões, trazendo ainda o benefício de despertar a obediência, não tanto pelo reconhecimento voluntário e sincero da dignidade monárquica, mas sim por causa de tão assustadora fantasia tirânica.

De maneira previsível para todos os príncipes que vingam, alguns exortados a vencerem seus obstáculos com a promessa de vingança mais à frente, este, em questão, levou adiante, entre privilégios só seus e carência de que sequer o nome veio a conhecer, passando por cima das incertezas com o rolo compressor do majestoso destino, que não comporta dúvidas (ou a sua expressão, até mesmo intimamente), e, crescido, rei morto, rei posto em seu lugar: ombros largos, músculos rijos, altura de herói, passos que não gravam no solo marcas de vacilações.

Se lhe perguntassem se pesa ser rei, talvez fizesse uma cara de que governar súditos nem sempre reconhecidos é capaz de vergar os ombros de um Atlas, bem mais do que as toneladas do mundo inteiro, mas jamais passaria por sua cabeça coroada que sus roupas, tão diferentes das dos outros homens, pesavam mais do que o normal, do que as dos (homens) normais – e só não era derrotado pela nudez dos instintos ou pela nudez da necessidade de fazer sucessor porque, em qualquer homem, a natureza transtorna o significado do que é leve e do que pesa nas costas.


Em nada diferente dos seus súditos, mesmo que não os conhecesse para além do recebimento, longe essa prática de suas mãos, de impostos, para além dos joelhos dobrados e dos olhos baixos a sua passagem, este rei também envelheceu, mas, heroicamente, não se desfez do ouro e dos brocados que se superpunham sobre seus ombros já arqueados pelo tempo, olhos nublados, passos tão instáveis, que gravam no solo, por onde caminhava, lentamente, marcas de hesitações que não experimentara jamais.

No último instante em que seu olhar esmaecido viu a vida, além de encher seu estreito campo de visão a imagem do que ele próprio fora, via seu filho, ponta da linha de (sua) sucessão, esperando que a vida recolhesse seu restante de fio, entre príncipe que sempre fora, desde que nascera, como seu pai, o pai do seu pai, e daí para trás, e daí para frente, e o rei à beira de (vir a) ser, velando esse ser que já não sente em si peso nenhum deste mundo: e quem sabe, agora, tudo tenha lhe ficado mais leve!

Contudo, é ilusão (nossa) pensar que roupas de ouro são uma vaidade vã, elevando, em consequência, a nudez ao posto de rainha do despojamento, pois, às vezes, a leveza de roupa nenhuma sobre o corpo é maior falta de liberdade que há, dessas que iludem o homem comum, fazendo-se sentir, enganadoramente, um rei, sem nunca ter sido príncipe.







sábado, maio 01, 2010

LAMENTO: BETE DAVIS’ AIS











em gente que, dizem os mais observadores, os que parecem dar mais atenção à fome dos outros do que à própria, salvo ao seu apetite por observar os hábitos alheios, come com os olhos: é o que dizem.


Caindo eu em minha própria armadilha, língua que, descontrolada, facilmente, nos trai, armadilha feita, aqui, com estas linhas, frágeis, em sua virtualidade, só à primeira vista, mas, embora longe de serem fortes como (um bom) escrito, suficientemente capazes de capturarem a presa, eu diria que, mostrando já como observo a vida de terceiros (e observar a vida de terceiros no quarto é, segundo alguns, desculpa de primeira para não se sair do cinema), por mais que isso esteja já na cara, à vista de quem quiser ver, há mesmo uma gente, universalmente espalhada, sem que isso signifique uma equilibrada distribuição demográfica, que fala com os olhos, sendo isso um excesso de expressividade, segundo as primeiras impressões, podendo ser também carência das grandes.

Porém, sem querer fechar os (meus) olhos a quem prefere, à própria língua, usar os olhos, há uma gente com bem mais eloquente expressividade ao falar, muito mais do que eu, com estas linhas que escapam dos meus dedos: são os que falam pelos cotovelos – como, não há como disfarçar, também eu faço, aqui.

Não sei com os olhos dizer o que quero, aparentemente, preferindo um método mais digital e, por ironia das palavras, dos mais antigos métodos de se dizer, ainda que não tenha sido o primeiro: e talvez essa minha preferência seja mais uma desculpa, porque, com as mãos, eu possa me manter a distância, enquanto que a linguagem dos olhos requer a viva presença de quem, assim, o diz, mesmo que faça cara de peixe-morto, com olhos vidrados, sendo isso até um recurso a mais em seu arsenal de expressividade(s).

Por não saber, admiro quem sabe fazer dos próprios olhos seu jeito de dizer: e se não quer dizer, basta fechá-los; e se quem ouve não deseja mais (os) escutar, basta fechá-los: digo, os próprios olhos, os que, então, estão na escuta, e não os olhos que são próprios de quem com eles, ora, fala, porque isso seria fazer do peixe-morto, subtraindo-lhe a vida que lhe dá esse hífen, um peixe, simplesmente, morto.

Há quem possa argumentar que falar com os olhos é um caminho aberto para a dissimulação – como se “dizer” com as mãos, como se falar pelos cotovelos estivesse imune aos enganos propositais! Em geral, coisa para poucos, falar tão bem assim com os olhos é uma arte, desenvolvida, desde os tempos do cinema mudo, quando os olhos pareciam mesmo maiores do que a cara que os continha, mal contendo-se eles em não saírem pela tela, por atores e atrizes (especialmente, por estas).

Já agora, no entanto, com tanto para ver, não podendo nos dar ao luxo sequer de uma piscadinha, que isso pode significar perder uma sequência inteira, olhos que falam são um incômodo, uma marca de quem não sabe dizer (a que veio), sendo mais rentável que se diga logo, de cara, sem deixar dúvidas, por desse jeito todos entendem, sejam os que falam pelos cotovelos, sejam os que, indo ao cinema para olhar a vida alheia, já acostumados a esse figurado buraco de fechadura, acham que fixar seu próprios olhos nos olhos de quem poderia dizer com a boca é pura perda de tempo, porque, afinal, há tantos filmes, tanta vida, lá fora, para...se ver.




quinta-feira, abril 01, 2010

SIM: IN THE RAIN








assar uma chuvinha é uma forma quase cariciosa, como é, em certos momentos, a sensação de uma chuvinha a cair, com uma delicadeza que parece querer dizer que não nos quer despertar, desejando mesmo, ao contrário, servir de trilha sonora, canção de ninar para nosso sono, encharcando os sonhos com doces e cálidas fantasias (ainda que, despertos, tudo seja uma secura só), de se expressar o pouco tempo que se pretende passar em determinado lugar, sugerindo que uma chuva, só porque no diminutivo, só porque não cai na forma de um devastador temporal, há de logo passar, havendo, contudo, e isso nossa experiência nos mostra, pelo menos àqueles que já pararam para observar as chuvas, chuvinhas que são quase infindáveis, mesmo que nunca ultrapassam determinado limite, jamais ameaçando, só de se a olhar, um dilúvio, embora, se continuar, indefinidamente, não importa se é chuvinha, há de (nos) inundar.

Para quem não vê chuva com regularidade, com aquela frequência que (nos) permite, caindo ela, pararmos para assistir ao seu mecanismo de queda e não aproveitar esse tempo, irregular, para dela tirar o maior proveito que se puder, pois, afinal, ela só cai de tempos em tempos, caindo diminutiva, o que exige paciência para se encher os cântaros, enchendo mais rapidamente a paciência de quem não está acostumado a sua irregularidade, para esses faz pouco sentido dizer “passar uma chuvinha”, porque seria gastar, em vão, com meras palavras (que não matam a sede de ninguém), um sentido que lhes é bem mais caro.

Para quem tem chuva, senão com uma frequência de calendário imutável, com a certeza de que, mais dia, menos dia, ela cairá, mesmo que mais-dia se alongue e menos-dia seja quase já uma miragem, pode-se dar ao luxo de se abrigar da chuvinha, não querendo se molhar, certo de que, a qualquer momento em que deseje se encharcar, haverá água disponível, já não em cântaros anacrônicos, mas caindo através de um mecanismo que imita uma chuva – e, luxo dos luxos, uma chuva que se pode regular: se se quer uma chuvinha, ei-la, caindo com ternura de pingos esparsos; se se quer um temporal, isso pode ser, imediatamente, uma ducha...de água fria (se se esperava uma chuvarada em temperatura elevada).

E só para nos darmos conta, se isso ainda for necessário, porque está tão a nossa cara, mas, sabemos, nem sempre vemos o que está demasiado a um palmo dos nossos olhos, especialmente, os que já passaram por algumas chuvas e, com o tempo, tem mais dificuldade para enxergar de perto, precisando mesmo afastar o objeto para dele tirar alguma visão mais nítida, do quanto este mundo é irregular, enquanto uns ainda cantam, apelando para crenças em que não levam fé, mas só para passar o tempo, enquanto aguardam a vontade dos deuses, para a chuva cair, uma chuvinha que seja, outros, no chuveiro, sob um temporal do qual não reclamam, até gozando a sensação de um dilúvio que se pode terminar, a qualquer instante, cantam – e como um deus, após observar sua obra recém-criada, acham que o fazem bem.

Em meus dias – e dizer isso já mostra por quantas chuvaradas eu já passei –, evitando especificações mais pontuais, jamais me tendo aventurado a experiências sonoras, ainda que beneficiado pela acústica de um banheiro ou pelo som do chuveiro a equalizar melhor meus próprios sons, emprestando-lhe uma maviosidade que não me é natural, deixei-me banhar, sem intenção de purificação física, num claro desejo de me elevar, mesmo que só uns poucos milímetros das minhas horas sempre tão chãs, por chuvas várias, procurando mesmo os pontos em que ela parecia cair diluvianamente, sempre protegido por uma arca próxima, à qual poderia recorrer, logo que me cansasse de me molhar, logo que uma voz, quase divina (por sua autoridade suprema), uma voz sem maviosidade, mas que podia também ser terna, ordenasse o fim da minha cantoria sem palavras, desse meu filme mudo, nesse meu domínio quase absoluto da cena, interrompida pelo pragmatismo de um organismo são, sob a ameaça de um monstro-resfriado que, até então musical, não fazia parte desse filme.





segunda-feira, março 01, 2010

A GRANDEZA DA SOLIDÃO NO HOTEL DA PRÓPRIA VONTADE






erro de Descartes foi ter nascido – aliás, por falar nesse “René”, seu erro, como seu próprio nome próprio diz, foi ter “renascido”: ah! esse Re Nato. Se não fosse isso, erro que, sejamos justos, retroage para ser dividido com seus ascendentes imediatos que o nomearam assim, os que mais diretamente contribuíram para seu batismo, muita coisa não teria acontecido. Por exemplo, quantas dúvidas a menos na nossa cabecinha (inclusive naqueles cuja cabeça dispensa tal diminutivo, talvez herdada de algum ascendente mais “cabeçudo”), cabeças essas, hoje, já bem menos coroadas, pelo argumento da intromissão divina em assuntos palacianos, do que no tempo de Descartes, a não ser que se considere como tal aquele círculo vazio que encima alguns homens calvos, qual tonsura sem votos.


Penso em tudo isso, mas nada me garante uma (boa) existência. Sem garantias que justifiquem e recompensem meu tempo empenhado nessas filosofias, “cogito” (e nem sempre existo, como consequência ontológica) de viagens, como a do próprio Descartes à Suécia, entre outros reinos terrenos, e daí, sem escalas, parto, sem precisar atravessar fronteiras perigosas, e já estou ao lado da rainha Cristina, que, diga-se “de passagem” (afinal, é ou não é uma viagem?), jamais sentiu, que eu saiba, as dores de um parto, tendo, no entanto, sofrido (e muito) dores, porque de dor há muitos tipos, como a dor de se despedir de sua pátria, para o bem dela – uma rainha sabe abrir mão do cetro pela integridade de seu povo –, e de se despedir para sempre.


De Cristina, com toda sua majestade já iluminista, esclarecida, déspota que não se sabe que tenha sido, rainha de uma terra que conhece longas escuridões invernais, embora não se possa deixar de mencionar seu sol estival que perturba, ainda à meia-noite, o bom andamento dos relógios mais conservadores, sempre com sua calculada claridade, sofrendo pelo sol fora de hora, dela, rainha, só mais um passo nos separa de, talvez sua “verdadeira face”, Greta Garbo, igualmente sueca, de quem não se pode tirar sua majestade, alguém que soube abrir mão de todos os atavios que compõem, na fantasia dos espectadores, o figurino da uma família real, e tudo isso em nome da própria integridade, sendo ela própria sua pátria e seu povo, além de rainha, pelo império sobre sua vontade, de si mesma.


Passo dado, algo em falso (é tudo fita!), mas sem queda à vista: quantas dúvidas ainda, monsieur Descartes! Dúvidas existenciais, dúvidas que não seguem seu método analítico, que erram o caminho e se desviam dessa notável mulher para, por mau hábito moderno, as supostas mulheres dessa mulher, sendo que não é nem um mal, nem é moderno esse hábito de uma outra mulher amar – e o hábito, tão mau!, é o de dar importância ao acessório, tornando o principal um apêndice que, com o tempo, pode até mesmo desaparecer (Garbo que o diga!), tal qual ao ser salvo da escuridão por uma “greta” de luz, queira-se saber com quem esse sol andou, durante a noite, quando não se o vê, já que de dia tem-se a impressão de que tudo o que faz é às claras, não se levantando suspeitas quando, combinadas ou não, as nuvens o velam.


Já passamos, nessa viagem que não sai do lugar, tempo demais na Suécia, e o visto de permanência aí já vai perdendo a validade, tornando necessário que aproveitemos cada instante dessa estada: e aqui surge um impasse. Como todas as fronteiras para além de Greta Garbo se fecharam (em si mesma(s)), para onde iremos agora, ainda com os pés, se não no chão, nesse estranho território? Ficar? Isso seria um desrespeito à voluntária solidão de uma estrela, já só, mesmo quando andava em constelação, brilhando, como se com saudades de sua terra, com “luz escura”, bela mais ainda por esse incômodo que provoca(va), solidão que “rendeu”, com lucros para ela, em que pesem os inconvenientes das perseguições à luz do dia, um mal-utilizado bordão a que todos os pretensos solitários recorrem, quando não têm outras justificativas para se apartar, escondendo-se assim numa cena de Grande Hotel: “I want to be alone”!

Deixemo-la, se é isso que ela quer. Voltemos a Descartes, sem sabermos muito bem (quantas dúvidas ainda!) onde isso há de nos levar. Será que nos conduzirá a uma ciência finalmente “razoável” ou a uma tirania da rainha Razão, absolutista, tirânica, despótica, que, mesmo adorando trocar ideias com tantos filósofos esclarecidos, não se abstém de, no caso de não entrar ela mesma nas cabeças, com toda “razão” a seu ver, mandar cortá-las fora (e fora, aqui, é só um recurso retórico) para afastar, de uma vez, os mitos, as superstições, as ilusões cinematográficas, astrológicas, algumas astronômicas, e ela mesma se incumbirá de mostrar o quanto são todas o efeito do trabalho da direção de arte, estando ali, naquelas cabeças, apenas como uma figuração de luxo.


De coração: estou disposto, sim, a voltar atrás, ao século dezessete, a Descartes talvez, ainda na corte sueca, mesmo que tenha sido de lá que eu acabei de sair, “só”...que...I want to be alone. E nos atira, de novo, nos braços quase alvos de Garbo: uma hora ou outra, todo filósofo repete esta frase, especialmente naquelas horas em que, inquiridos, não têm, ou ainda não as têm, as respostas na ponta da língua – quer, assim, ficar só, mas, mais cedo ou mais tarde, desejará cair nos braços do povo, mesmo que este não seja seu público-alvo, e só disso “abrindo mão” para receber, desse mesmo público, com ele como alvo, os aplausos que não aconteceriam se o filósofo estivesse nos braços do povo, por total impossibilidade de se o carregar e se o aplaudir, ao mesmo tempo.


I want to be alone: é quase refrão para toda atriz que, entre uma cena e outra, representa-se a si mesma – e como esse “si” não está protegido sempre pela maquiagem, pelo figurino, e por uma psicologia de empréstimo, não deixa testemunhos que registrem seu clamor para uma posteridade em que não se saberá mais do refrão do que da própria atriz. Porém, basta ouvir, de novo, o “ação!” e lá vai ela, sonhando, já esquecida de sua solidão, com aplausos, ao lado do povo, mesmo que confunda como sendo este o que não passa, na verdade, de uma enorme figuração. E bem pode ser que tenha sido esses mesmos figurantes que, apenas trocando de cena, honraram aquele filósofo, ovacionando-o, publicamente.


I want to be alone: isso é bem coisa de “estrelas”! Entre um buraco-negro e uma nebulosa, elas se fingem de solitárias, em meio a uma constelação de concorrentes mais belas, ou apenas mais jovens, o que não deixa de ser uma beleza à parte. Mas é suficiente que um poeta, dos mais comuns, talvez empregado do estúdio para alimentar suas estrelas, demorar-se um pouco mais para chegar ao encontro marcado com esse inatingível que elas creem ser (porque as atrizes, até as mais comuns, as que nem pensam em ficar a sós para fazerem fita, são, para um poeta comum, sempre inalcançáveis), para que elas comecem a piscar, incessantemente, tentando atrair rimas forçadas de prosadores alheios às suas necessidades; rimas que, então, são para elas o mesmo que são os aplausos do vulgo para filósofos-estrelas.


I want to be alone: até mesmo o povo já aprendeu a dizer essas coisas, ainda que não frequentem grandes hotéis nem mostras retrospectivas de cinema em preto-e-branco, e não saibam também nem inglês, a língua desses solitários todos, nem francês, a língua (duvidosa?) de Descartes, ou sueco, a língua da nobre Cristina. Talvez (sem querer dar uma de filósofo, mas conseguindo a proeza de parecer mais um, entre tantos, poetas de rimas banais) a solidão seja uma espécie de Esperanto, complicada língua que surgiu para facilitar a comunicação entre os povos todos, esperando muito das almas, querendo-se universal, mas não passando de mais um esoterismo na língua dos que só repetem essas palavras – I want to be alone –, imitando o sotaque de Garbo, quando sabem haver alguém para os escutar, sofrendo, contudo, se quem então as ouve, essas palavras comuns, abandona esse discurso repetido para ouvir um novo filósofo velho de quem jamais ouvira antes falar ou para dar ouvidos ao que dizem as revistas sobre velhas atrizes, essas novas estrelas cadentes.


Filósofo, eu não sou mesmo – e a prova disso é que não sonho, dizendo, no entanto, o quanto isso é um pesadelo, com os braços do povo, sonhando mais com os alvos braços de Garbo, não sendo eu mulher suficiente para ela, nem homem bastante para ser seu galã. Também não sou de cinema – e a prova disso é que não uso maquiagem, embora lance mão do recurso, filosófico, do sofisma, ao dizer que há beleza maior na “naturalidade” do que nos enfeites artificiais. Não sou estrela – e provo isso ao me deixar ver de frente, sem piscar, e de verso: e aí, nenhum poeta, à vista, há. Se povo eu for, só o serei pela desconfiança de que possuo muitos braços-mecânicos, e não para, automaticamente, carregar filósofos ou atrizes quaisquer neles, mas para manusear tantas palavras assim.


Não sendo tanto, o pouco que sou, o que faz de mim? Isso não sei dizer. E como filósofo (que não sou, repito) que não sabe responder, precisando de tempo para pensar, “metodicamente”, seguindo, rigorosamente, os passos determinados por Descartes, saio-me (disso) assim: I want to be alone!...mesmo que isso não seja mais do que uma grande mentira.

Coisas da ficção.



segunda-feira, fevereiro 01, 2010

MONSIEUR HULOT NA ATLÂNTIDA






izer, simplesmente, que qualquer bagunça é uma chanchada é voltar no tempo, nessa fantástica máquina, à disposição de quantos a queriam usar, e que mistura memória (máquina, às vezes, falha – se não me falha, agora, a própria memória) e imaginação – e esta, por vezes, quanto mais “quebrada” a máquina (da memória), melhor funciona, até só funcionando, em alguns, assim. Mas, voltar assim no tempo é dar de cara com uma (e foram tantas) chanchada que, bagunça produzida, era produzida, seguindo-se uma ordem, não livre de eventuais bagunças, sem que se pudesse então destas se dizer que era uma chanchada, embora, aparentemente, dizer isso seja o mesmo que desdizer (d)aquilo, porém, como ninguém se lembra mais do que eu acabei de dizer, menos ainda do que já havia dito antes, antes de dizer o que, dito há pouco, não é mais lembrado, pouca diferença faz...

Porque minha máquina, a que deve funcionar bem para bem funcionar, já vai ficando para trás: e ainda que isso seja pertinente a ela, à memória, o que quero dizer é que, um dia, tão azeitada que mal fazia ruídos, a cada lembrança, hoje, faz barulho, a cada esquecimento: que zoeira! Compensando, o que para muitos há de parecer só um prejuízo a mais, a outra peça dessa mesma máquina, a fantasia que lhe empresta aparência (de) fantástica, mais e mais, vem-se mostrando, sem pudor de aparecer, com suas armas: ora exibindo suas garras (que qualquer monstro fantástico, ou mesmo um fantástico objeto de nossos desejos, não deve prescindir de garra(s)), ora surgindo sem garras, sem dedos, sem mãos, sem braços e, para encurtar essa amputação progressiva, sem nada, sendo isso o que a faz, especialmente, tão fantástica.

Baguncei o coreto?! Talvez tenha feito uma chanchada, sem, no entanto, ter a graça desta, sem a musicalidade daquele, por mais bagunçado que pareça esse pequeno coro, antigo centro das atenções em uma pública praça, agora, nostalgia que só quem dela (dele) sente saudade é quem, assobiando, ao acaso, uma canção, relembra de um passado carnaval nas cenas de uma chanchada.

Contar piada eu não sei. Paródias eu já faço, de mim mesmo. Dar cambalhotas, hoje em dia, é-me muito arriscado: e quando não deveria ser, não me arrisquei a dá-las. O que (me) falta é originalidade para dar nome a esse filme, mesmo chamando, em meu auxílio, o teatro, o musical, que alimentou tantas chanchadas em revistas.

A sutileza morreu – e como era sutil, ninguém percebeu, a ponto de ainda dela se falar, sem sutilezas, como se viva estivesse. Sobrevive a bagunça, mesmo que já não seja adequado, para não dar muito na cara o tempo que passou, mesmo que a (minha) fantástica máquina tenha chegado, retroativamente, até aqueles dias, chamar a tudo isso de...chanchada. É bagunça – e ponto final: hoje, tudo tão sem graça!...





sexta-feira, janeiro 01, 2010

AFAGOS ÀS FADAS








ó não começo com o clássico “era uma vez...” porque isso poderia parecer conversa para boi dormir ou um conto de fadas para ninar um pirralho que ainda não conhece o sistema decimal para contar nos dedos de suas mãos uns tantos carneirinhos até seu sono chegar e, assim, interromper seus cálculos noturnos. Mas, há ainda uma outra razão: é que a fórmula, como um soco na cara, apesar do apelo quase caricioso de palavras tão nostálgicas, justamente por o serem, lançaria esta história para lá, no tempo, num lá demasiado lá atrás para que a contemporaneidade de exemplos, à mão cheia, permita ir adiante, interceptando a narrativa com o apelo – menos súplica e bem mais uma velada ordem, com verbo, excepcionalmente, conjugado, à perfeição, no imperativo afirmativo – a uma inspiração mais reconhecível nessas nossas modernas tramas em que homens não faltam, carecendo, no entanto, de feitos que nos redesenhem, apagando a desculpa de o sermos (tão humanos) para nossos erros, acentuando traços heróicos que talvez existissem, na origem, e que se perderam pelo mergulho mundano nas águas demasiado humanas.

Como, então, começar? Ora, de fato, já comecei: e isso me libera de começos mais solenes e, já estando próximo do meio, sem um cálculo preciso de onde esta história vai dar, posso fazer de conta, sem me voltar aos contos de fadas para bois dormirem, de que fiz o que devia fazer, prosseguindo com isto (aqui), com a consciência tranqüila de que não queimei etapas indispensáveis à compreensão do que se passa, aqui.

Alexandre (e se dele disser O Grande, isso seria como o soco que tentei, a todo custo, evitar), aquele que, como epônimo das coisas grandiosas de que um homem é capaz (aparentemente, só porque a história é curta demais para a interminável lista de anônimos necessários às conquistas), empresta, ainda hoje, em quem o traz na lembrança de uma epopeia que, lida, parece-nos inverossímil, seu nome ao “quase impossível”, recebeu, certa vez, uma carta, sem autor declarado, que o avisava do suposto suborno a que seu medido particular, Filipe, deixara-se submeter para, muito bem pago, envenená-lo, misturando, como remédio, uma droga letal a sua bebida. Cortar-lhe a cabeça soa previsível, se a história fosse de uma Rainha de Copas e não à virilidade de um homem dessa (sua) cepa. Enfim, não a cortou, pessoalmente, e como não era dos que mandam recado, também não mandou que a cortassem.

O que fez? Esperou – que talvez seja uma das maiores virtudes, e uma das mais desprezadas, dos grandes homens – receber, diretamente, das mãos de Filipe a tal bebida, suposto veneno, e, sem hesitar, sem que olhos que testemunhavam a cena presenciassem qualquer mínimo tremor em seus dedos, inquietação em seus olhos, palpitações anormais em seu peito, tomou a taça e, enquanto bebia todo seu conteúdo, fez seu medido, a seu lado, ler a tal carta que o acusava de ser autor dessa tentativa de assassinato.

Somos, é bem possível, acostumados às fadas (que renegamos, com o tempo) ou com as ruminações bovinas em cardápios pastoris (por nos sentirmos, vaidosamente, vã vaidade, urbanos demais para essas conversas fiadas), ávidos por uma (boa) moral, tomando até como mal contada uma história cuja moral não se extrai sem esforço, estando, então, tão á superfície dos fatos como desejamos encontrá-la, a ponto de ser suficiente os olhos para pescá-la, sem fazermos nisso tudo intervir a mão, porque os bons peixes, às vezes, vêm de águas perigosas, arriscadas demais para aí se meter o bedelho.

Essa história, de Alexandre, tem lá a sua moral, mas, provavelmente, a moral pertence mais ao próprio Grande do que, propriamente, à (sua) história, a essa que o tem por personagem, protagonista de um capítulo a mais em sua longa lista de desafios vencidos, durante uma vida tão curta. Alexandre, diga-se, não morreu naquele momento, porque sua bebida não estava envenenada, como afirmava o covarde remetente do aviso anônimo. Disse Alexandre – e quantos de nós podem(os) dizer o mesmo, com sinceridade, sem termos à mão um antídoto com efeito imediato? – que preferia morrer, mesmo tendo sido avisado dessa possibilidade traiçoeira, a duvidar dos seus amigos, como era Filipe.

Podem dizer, com risinhos covardes nos cantos dos lábios, essa é uma história para boi dormir. História como essa, verdadeiro sedativo para bois insones, há em todo campo, embora haja técnicas mais modernas de se encher os ouvidos de um rebanho (de insones), talvez rememorando fatos (muito) passados. Há contos, mesmo quando as fadas já não resistem à precoce destruição das fantasias infantis. Exemplos, hoje, carecem de heróis verossímeis, quem sabe se por não ser crível que haja heróis, simplesmente, essas figuras, agora, tão risíveis, quanto as fadas, e tão desconhecidas, quanto os bois para os olhinhos irrecuperavelmente urbanos.

Eis as palavras, num modelo que se assemelha a uma carta, ainda que lhe faltem certas características que torne o reconhecimento mais imediato como uma clássica epístola – e não é anônima, caso isso ainda não esteja claro: coisa só de mais algumas linhas, o que, por si, não me livra de ser chamado, a qualquer momento, de covarde. As (minhas) palavras são a bebida – quem sabe, uma “droga” (de palavras), talvez seja um remédio, ou um antídoto contra envenenamentos do olvido. Ardiloso, não te dei a escolha de ler, enquanto bebias, porque para lê-la(s) – carta, palavras – tiveste de bebê-las, uma a uma, todas as palavras, ainda que algumas tenham sido engolidas em seco, na pressa para acabar com isso.

Não prefiro, pequeno homem como sou, a morte a ter de esquecer os amigos – o que já revela mais um traço da minha covardia. Porém, se os esqueço, como se não houvesse escolha, isso é a morte de tudo aquilo que pode, ainda, fazer-me grande, ao menos, aos meus próprios olhos, nem que seja por uma data certa, e logo esquecida.

Sem mais, e não tendo coragem suficiente para me esconder no anonimato...