terça-feira, junho 01, 2010

PRESUNÇÕES DE UM HERDEIRO PRESUNTIVO














omo já nascera (para) rei – príncipe, desde que fora trazido à luz, na ponta da linha da sucessão –, aprendera, ainda numa época em que se ajoelhar diante de uma criança, mesmo que molhando, naturalmente, como um plebeu qualquer, seu berço de ouro parece algo ridículo, embora engraçado para quem ri por trás das grades douradas de sua primeira falta de liberdade disfarçada com spray de ouro, a sustentar em seus ombros frágeis – um dia, trapézio viril para os volteios próprios da idade – o peso da majestade em forma de peças superpostas de tecido denso, tramado com preciosos fios, numa sala contígua ao palácio, longe o bastante da realeza pomposa para que não se contamine a nobreza com a banalidade do trabalho, ainda que fazendo uso de matéria-prima tão pouco cotidiana, mas próxima o suficiente para que se exerça fiscalização direta e se evite, assim, com olhos atentos, que alguns fiapos de tanta preciosidade sejam reutilizados, mesmo que como simples elemento decorativo, nas roupinhas de moleques com pés no chão, até porque quem iria acreditar que aqueles fios que, ao sol, reluzem são mesmo de ouro, vestindo esse moleque?!

Não adiantou que inteligências reais inventassem uma técnica que emprestava maior leveza a essas linhas que urdiam o encobrimento das nudezes palacianas, pois, ao se experimentar a primeira peça feita sob medida, o real piloto de provas se sentiu como que esmagado sob a falta de magnitude que os quilos, até então, garantiam, até porque, diziam os masculinos defensores de tanto peso, já se acostumara, desde cedo, com essa força que se exerce sobre os ombros, junto com a obrigatoriedade (mais uma liberdade a menos) de se manter a postura, com coluna ereta e peito devidamente encaixado numa projeção algo arrogante, mas que agrada aos olhos submissos, ávidos por uma autoridade que lhes alivie, pela ordem sem contestação, o peso de suas próprias decisões, trazendo ainda o benefício de despertar a obediência, não tanto pelo reconhecimento voluntário e sincero da dignidade monárquica, mas sim por causa de tão assustadora fantasia tirânica.

De maneira previsível para todos os príncipes que vingam, alguns exortados a vencerem seus obstáculos com a promessa de vingança mais à frente, este, em questão, levou adiante, entre privilégios só seus e carência de que sequer o nome veio a conhecer, passando por cima das incertezas com o rolo compressor do majestoso destino, que não comporta dúvidas (ou a sua expressão, até mesmo intimamente), e, crescido, rei morto, rei posto em seu lugar: ombros largos, músculos rijos, altura de herói, passos que não gravam no solo marcas de vacilações.

Se lhe perguntassem se pesa ser rei, talvez fizesse uma cara de que governar súditos nem sempre reconhecidos é capaz de vergar os ombros de um Atlas, bem mais do que as toneladas do mundo inteiro, mas jamais passaria por sua cabeça coroada que sus roupas, tão diferentes das dos outros homens, pesavam mais do que o normal, do que as dos (homens) normais – e só não era derrotado pela nudez dos instintos ou pela nudez da necessidade de fazer sucessor porque, em qualquer homem, a natureza transtorna o significado do que é leve e do que pesa nas costas.


Em nada diferente dos seus súditos, mesmo que não os conhecesse para além do recebimento, longe essa prática de suas mãos, de impostos, para além dos joelhos dobrados e dos olhos baixos a sua passagem, este rei também envelheceu, mas, heroicamente, não se desfez do ouro e dos brocados que se superpunham sobre seus ombros já arqueados pelo tempo, olhos nublados, passos tão instáveis, que gravam no solo, por onde caminhava, lentamente, marcas de hesitações que não experimentara jamais.

No último instante em que seu olhar esmaecido viu a vida, além de encher seu estreito campo de visão a imagem do que ele próprio fora, via seu filho, ponta da linha de (sua) sucessão, esperando que a vida recolhesse seu restante de fio, entre príncipe que sempre fora, desde que nascera, como seu pai, o pai do seu pai, e daí para trás, e daí para frente, e o rei à beira de (vir a) ser, velando esse ser que já não sente em si peso nenhum deste mundo: e quem sabe, agora, tudo tenha lhe ficado mais leve!

Contudo, é ilusão (nossa) pensar que roupas de ouro são uma vaidade vã, elevando, em consequência, a nudez ao posto de rainha do despojamento, pois, às vezes, a leveza de roupa nenhuma sobre o corpo é maior falta de liberdade que há, dessas que iludem o homem comum, fazendo-se sentir, enganadoramente, um rei, sem nunca ter sido príncipe.