quarta-feira, dezembro 01, 2010

SOLIDÃO DOGmática


achorro sem dono – porque cão não é uma palavra tão viralata – é uma dessas expressões que evocam uma imagem com tal força que, popular como é, dificilmente encontra comparação num linguajar mais erudito, e mesmo na mais alegórica das poesias.

Cachorro assim é relativamente fácil de ser identificado, embora essa facilidade toda não se traduza num retângulo de metal, sustentado por uma corrente-coleira, trazendo gravado seu nome, ou, talvez, o do dono – o que só aparentemente revela a importância do cão, dada, como se poderá pensar à primeira vista, a preocupação do dono em ser encontrado, no caso de perdido esse seu cachorro: só aparência, pois muito provavelmente é o dono quem quer ser encontrado, independentemente de qualquer cão.

Sem dono, esse cachorro, valendo-se e alguém que lhe passa por perto, mesmo sem lhe dar atenção, até se desviando dele, como se fosse um incômodo, um obstáculo ao seu livre caminhar, e, condicionado a isso por sua solidão, começa a segui-lo. Esse que passa, em geral, não percebe, de imediato, a perseguição, se pudermos chamar assim a um terno acompanhar, crendo que, ao léu, na ausência de um dono que lhe tome as rédeas (seu burro: é coleira!), o cachorro, só por coincidência, está indo na mesma direção, podendo estar (seguindo) indo em outro, que isso não lhe faz a menor diferença.

Mas, alguns trechos vencidos, cão no calcanhar ainda, sem, no entanto, ameaça de mordidas, sabendo-se não ser seu dono, percebendo que o cão não é “de raça”, o que poderia fazê-lo pensar duas vezes, tenta-se, com palavras, livrar-se dele: e raramente são palavras gentis que lhe pedem, por favor, que siga seu próprio caminho.

Insistente o cão, instintivo o cachorro, quem sabe se já vergado sob o peso de outros desprezos, faz de conta que não entende aquelas exortações que lhe são lançadas no focinho, ou até as entende como se fossem um incentivo, como se aquele que então diz tais palavras, por trás delas, não desejando dar essa impressão assim de cara, quisesse mesmo sua fiel companhia. E esse incomodado, quase já a perder a paciência com o cachorro, olhando em torno, achando-se já o centro de uma anedota, como se o cão, ao seu lado, sublinhasse uma característica cômica que, sem ele por ali, passaria despercebida, chegando ao ponto de, mirando um desconhecido, tomando-o por um daqueles que estão prontos para estourar numa sonora gargalhada, apressa-se em lhe dizer, como se lhe apresentasse um prova cabal: esse cão não é meu.

Notar um de nós “sem dono” já não é tão fácil assim, ainda que haja os que, desacostumados a pertencerem-se a si mesmos ou achando mais confortável (para si mesmos) pertencer a outro, não sai de casa sem uma correntinha com um penduricalho com seu próprio nome (ser chamado pelo nome já lhe dá a sensação de pertencer a alguém) ou então com a identificação do (seu) dono, ainda que este, há muito, tenha deixado de o contabilizar como propriedade sua, não se lembrando sequer mais dele, nem de, um dia, ter-lhe posto aquela medalha do pescoço, tanto que nem fez questão de pedi-la de volta.

Será que os cães, como o faro que têm, também sabem observar qual de nós, em nossas andanças que simulam destino certo para camuflarem caminhos ignorados, é sem dono? O que será que sentem(?), quando, sem dono, sem rumo, mesmo sem nos darmos conta disso, aproximamo-nos deles, insistindo, se eles, sem palavras, mas com suas onomatopeias eloquentes, parecem nos dizer “não”, que eles têm já seu dono; “não”, ainda que, mentindo então, sejam mesmo cachorros sem dono?

Só a beleza de uma poesia incomparável, somada à força do riso amargo, mais uma imagem que fala, simultaneamente, ao erudito e ao popular é capaz de juntar cachorro sem dono a um homem sem dono, arrancando-nos gargalhadas que, nos mais atentos, ferem a garganta, provavelmente, por tocar numa corda tensa que preferiríamos manter completamente muda.