quinta-feira, dezembro 01, 2011

O JOGO DO PODER














Hierarquia dos coros dos anjos,
estabelecida pelo pseudo-Dionísio, no século VI


TRONOS
Rodas de fogo com asas em volta, cheia de olhos


ão é na cabeça em que o poder se assenta, embora seja por aí que ela passe, repasse, se acomode, ora criando dores, ora, mesmo ainda sem o poder de fato, dando prazer, só de pensar, apesar de ser ela o lugar ideal para se ser cingido por uma coroa, símbolo costumeiro de certo tipo que manda, extrapolando essa imagem em particular para se tornar uma marca, metáfora que seja, do atributo, às vezes auto-outorgado, de fazer e desfazer, em que pese alguns fazerem (o) bem e outros, podendo ser os mesmos, desfazerem (d)o mal.

Não está nas mãos de ninguém ter poder ao seu bel-prazer, ou, o que é raro, abrir mão dele. E o cetro que eventualmente carregam, ora mudado em espada de fio sempre recomposto, ora, o que nem sempre é uma mudança para melhor, em “pena” (quando, achando que podem, se põem a escrever, é de dar dó, é um deus-nos-acuda fazê-los crer no que disse La Bruyère: “A glória ou o valor de alguns homens está em escrever bem; o de outros, em não escrever”.

Aos pés é que não deve estar, já que os poderosos, ou aqueles que se candidatam ao poder, reservam-nos, seus próprios pés para, a altura da cabeça dos que, então dobrados, o poder é exercido, demonstrarem, assim, o quanto podem, o quanto podem fazer os outros se dobrarem, a ponto de sua cabeça, talvez silenciosamente cingidas de vergonha, tocar, em submissão contorcionista, os ditos pés do poder em pessoa.

Sendo assim, onde estará?

O poder, creio, longe de mim esse exercício altivo, mais costumeiramente, com o disfarce da “figuração”, da linguagem figurada, dobrado a tantos poderes que já nem sei estabelecer diferença entre os que são de verdade (e se o são, obrigam-nos mesmo a nos dobrar?) e os que não passam de mentira, de uma encenação sem poder de fogo suficiente para dobrar um homem de verdade, a não ser quanto este prefere dar valor à mentira do poderoso, por ser esse o caminho mais curto, se não para se tornar também (não um homem), um poderoso, ao menos angariar algumas benesses, o que não deixa de ser um poder, diante dos que, ou não se dobrando o suficiente ou não se tendo dobrado de forma nenhuma, angariaram a ira poderosa, está, e é nisso que creio, o poder em questão, assentado...no trono, e nada mais a dizer, para não entrar pelo cano, para não adentrar na fisiologia dos homens: poderosos em qualquer nível hierárquico, desprovidos de poder, com poderes além das humanas ambições - até porque sei eu o quanto, dobrando-se de cólica, o mais humilde dos homens também ambiciona o poder, ou o trono em que ele se assenta, para se assentar, submisso, porém, a um poder maior, e que não vem dos céus, que o faz parecer, a sós, um reizinho (de nada), mas, se flagrado em público nessa sua exibição de poder, aparece como o mais ridículo dos homens, sob os apupos dos seus semelhantes, todos eles conhecedores das idas e vindas desse tipo de poder, mas, circunstancialmente, sem cólicas, o que os deixa numa posição, ereta provavelmente, de olhar esse “rei de merda” do alto, tão súdito o outro
encontra-se de sua necsesidade de aliviar-se do peso de estar sempre a mandar: vá à merda!



QUERUBINS
Uma cabeça e duas asas; guardiães do paraíso


“Vistos” assim, que diferença faz? Uma só cabeça, como nós a temos, com a vantagem, nossa, de que podemos perdê-la: e eles? Ou podemos, simplesmente, dizer isso, justificando as asas que nos demos, asas estas que em outros devem, segundo nossa razão humana, ser aparadas, logo que deem mostra de se estarem expandindo além dos limites que lhes são próprios, como se se pudesse conjugar, na mesma imaginação, asas (para que te quero) e contenção (da liberdade).

Olhando ainda esse quadro (no gótico do século XIII, anjos eram belos, jovens, cheios de vida e graça, com grande nobreza e porte: ou seja, tudo com que os homens de hoje sonham), e, mesmo que haja outro ponto-de-fuga, mirando suas asas, é isso que nos diferencia: neles, supondo que não sejam apenas um recurso meramente pictórico, com função tão-somente estética, asas não são arte, pois tem um objetivo, que deve ser o torná-los, alados então, com trânsito livre nesse universo cada vez mais “engarrafado”, e quem sabe assim para que, já sem cara de anjo, os homens se esqueçam de que não têm mais, ainda que eventualmente jovens, a mesma beleza angelical que a quase nenhuma idade lhes dá, de que o tempo lhes tira do “cheio de vida” as gotas que, por serem isso, não parecem fazer falta numa contagem geral, mas que, individualmente, diminuem, progressivamente, a graça de viver; e quanto à nobreza e ao porte, o “engarrafamento” só mantém a pose e as atitudes nobres em quem tem natureza de anjo; e se neles é assim, asas em nós, ou nos fazem anjinhos de procissão, com “penas” de papel crepom, que não pesam nada em comparação com os outros papéis que nos esperam pela vida afora, ou nos dão aquela liberdade de imaginação que é a nossa vingança (tão humana como ela é) contra esses (outros) anjos, sempre jovens, belos, graciosos, imortais: atados ao que são, anjos não podem ser senão o que cada um é, enquanto que nós, enquanto cultivarmos essas asas, enquanto alimentarmos (com as próprias asas) a imaginação, poderemos ser homens infinitamente belos, poderemos ser anjos desgraciosos, poderemos esvarziar-nos de vida até (quase) a última gota e voltarmos a ficar cheios de pose, nobres aqui, homens sem nome acolá.


SERAFINS
Seis asas


Agora sim! Vai ser preciso muita imaginação, talvez mesmo juntar vários homens, dos que já têm, naturalmente, muita, para podermos sustentar, num só anjo, três pares delas.

Se anjos alados, o que parece ser uma expressão demasiado forçada, e não é, são uma “criação” do século V, frustrando quem sempre pensou que tudo houvesse sido criado na hora zero, hora agá da invenção deste mundo, de onde há de ter saído um com seis asas?

Pelo aparente excesso, ficamos tentados (expressão, para alguns de nós, inadequada, quando se fala de anjos, embora para outros apropriada, já que o mestre das tentações, tenha tido ou não suas asinhas cortadas, originalmente era um anjo) a dizer que tanta imaginação deve ser coisa dos nossos tempos. É preciso, porém, considerar que, sustentando esse raciocínio, nós só lhes acrescentamos, até com certo exagero, admito, algumas asas a mais, quem sabe apenas por um “motivo” artístico, já que é bem possível que elas não tenham mais função do que teria um só(?) par, mas que a grande ousadia inventiva, independentemente da quantidade, foi a coragem de pôr asas numa criatura, mesmo que, temerosos de continuar lhes chamando de homens, apesar de as termos moldado a nossa imagem e à semelhança que gostaríamos de cultivar, eternamente, tenhamo-las apelidado de anjos, no geral, e de serafins, no particular.

Particularmente, acredito que mais de um par, sobre meus ombros já carregados de papel (crepom), mais do que um exagero estético, sob o risco de tornar o belo uma caricatura monstruosa, se constituiria um fardo difícil de carregar, ainda que com tantas asas, em tese, fosse me sobrar imaginação, o suficiente para me reinventar como um homem qualquer, sem asas mesmo, como qualquer homem que carrega suas penas, nem sempre às costas, que carrega seus papéis, raramente nas costas, salvo os homens que vivem, sem nobreza, apesar de alguns manterem o porte, justamente, nessa injustiça que inventamos, sem nenhuma imaginação, de carregar papéis, nesse caso, papéis que não lhes pertencem, representações que não são suas, originalmente, falas mudas, frases sujas, silêncios reciclados.

Mas não estou aqui para falar de mim (o que eu posso ter tido de angelical, um dia, a sequência de dias se encarregou de levar, deixando-me, não sei se como uma recompensa ou se como uma pena que solta uma tinta indelével, apenas, na imaginação, com a expressão “cheio de vida”, que hoje me parece, e mais com o passar dos dias, cada vez mais vazia, mesmo que eu estufe o peito, simulando porte, que levante a cabeça, querendo emprestar-me uma nobreza que o próprio levantar dela faz desvanecer). Não estando aqui para isso, também não estou para encher a bola de anjos que têm tantas asas que, mesmo que eu as corte, para que eles caiam na real, não hão de lhes faltar imaginação.


DOMINAÇÕES
VIRTUDES
POTESTADES


Alvas até os pés, cintos de ouro e estrelas verdes;
sustentam na mão direita varinhas de ouro
e na esquerda, um selo com a letra inicial
do nome de Cristo


Pelo amor de Deus! Não há como negar, por mais que se queira condescender com criaturas assim, saídas, provavelmente, à mesma imaginação que nos gerou - o que poderia explicar a inclinação de alguns de nós para o acúmulo de detalhes, a sobreposição de acessórios, tudo isso encobrindo o que deveria permanecer o principal, escondendo, então, o anjo que (se) é em nome de uma visibilidade tão ao nosso gosto.

Alvas, fora nas “tribos” próprias, caíram de moda, embora, a meu ver, ainda cause efeito vê-las desabando, delicadamente, até os pés. Cintos, não! Recriados a cada estação, fora os que são clássicos, e que sempre dão no couro, a qualquer tempo, são sempre um acessório que se deve ter à mão: e todo “anjinho” que conheceu, em idade para isso, suas quedas, sabe o que é ver um homem, espécie de Deus, pelo tamanho que tem, com um cinto na mão, pronto a, sem ser artista, lhe dar novas funções, criando se não uma gritaria geral, uma, em particular. Mas, cintos de ouro é exposição demais, até para quem tem poder, até para quem pode se evadir rapidamente, recorrendo não aos próprios pés, mas às asas, ou ao poder de surgir e de desaparecer, por mais que permanecem na (nossa) imaginação. Até aí, passa. O que dizer, no entanto, de estrelas verdes, como uma ideia, até boa, mas que se expôs antes de se a ter amadurecido o bastante, desperdiçando uma imagem que, completa, poderia encantar, e que, às pressas, deixam a sensação de que algo, nesse figurino, não combina. Varinha à mão, seja qual for ela, faz de um anjo uma fada, comprometendo-lhe a reputação, por mais que se insista em dizer que anjos não têm sexo - mas devem ter lá a sua vergonha! Do selo, experiente em cartões-postais, prefiro passar ao largo; não por eles em si, apesar de não ser um colecionador dessas estampas, mas pelo nome que encerram - agir diferente, seria brincar com fogo, mesmo que esse elemento pertença, na nossa imaginação dada a tons avermelhados, a outro “elemento”.


PRINCIPADOS
ARCANJOS
ANJOS
vestes de soldado, cintos de ouro, dardos na mão


Pelos cintos, passo batido, para não apanhar ainda mais. Pelas vestes, preferindo escapar a esses soldados, cujo poder desconheço, e não quero experimentar em minha própria pele, como cobaia de guerra, passo, perto o bastante para sentir-lhe o perfume, muito embora, imagina-se, o cheiro de soldados, ao menos quando vindos da batalha, não deva ser semelhante ao de um ramalhete oloroso de angélicas, com suas alvas flores mínimas encimando logos talos verdes - e, felizmente, estes aqui não carregam aquelas estrelas. Paro, contudo, diante da impressão que causam os dardos.

Minha imaginação, demasiadamente terrena, cheia de histórias de guerras, não pode perceber a agudeza de espírito de quem pôs nas mãos desses anjos essas setas, mas, como se sentisse, em algum indefinível ponto de mim, a estocada da curiosidade, pergunto-me quem são os alvos para esses dardos. Serão os inimigos dos homens (e reconheceriam eles, num seu semelhante, já caído, mas esperto o suficiente para exercer seu poder mesmo assim, um alvo para seus dardos)? Serão, esses alvos, os próprios homens, espécie de caídos por herança? Serão os alvos? Serão os escuros? Serão os que ficam sempre no meio do caminho, num cinza que nunca se compromete, por covardia de assumir a sua verdadeira cor?

Eis a grande questão que deveria preocupar a humanidade: e não é a contabilidade dos arsenais de dardos em mãos de anjos expatriados e dos que controlam, com mão-de-ferro ou com ela cheia de ouro, as pátrias, a sua e aquelas onde há mãos estendidas mais para saciar a fome do que para serem civilizadas, porque é difícil, além do que se pode esperar dos instintos de um humano primário (nenhum homem assume ser secundário, mesmo que tantos já se creiam superiores), ser apenas gentil, quando, incontido, a barriga, sem a discrição que se toma por adequada, grita suas carências. Não sendo isso, é, até onde me cabe contar, contador que sou dos poderes que não tenho, o que deveria nos preocupar a todos, não tirando da cabeça os dardos, seus alvos.

E isso poderia começar pelo inventário, na nossa cabeça, dos nossos próprios dardos ali entocados, ali estocados, ali, constantemente, afiados para que suas pontas não percam o poder de estocar, mesmo quem, então, se ache devidamente entocado, para fugir a (nossas) setas; a seguir, mesmo que não cheguemos a uma conclusão definitiva a respeito do número exato deles, para quem eles se dirigem: e não são menos letais os (nossos) dardos teleguiados, ou seja, aqueles que lançamos a distância, mentalmente, sem senti-los, palpáveis, na mão, atirando-os em imaginação, pois quando o alvo é bem calculado, o dardo cumpre seu objetivo. E nós, passeando paz, pacíficos-de-passeata, vestidos de alvo, com carinha de anjo!


(TETRAMORFOS)
anjos de seis asas que associam os símbolos dos
quatro evangelistas:
o anjo, a águia, o leão e o boi


Não vou chover no molhado. Nem vou gastar minha saliva. E não porque já tenha dado muita asa para anjos demasiado “apenados”, apenas porque, como não fazem parte da hierarquia oficial, mesmo que possam ter algum poder, prefiro voltar minha mira, fazendo-os meus alvos, para os poderosos já estabelecidos, com nome na praça, com reputação que ultrapassa os limites desta terra e repercute até nos céus, sobretudo neles, que é o espaço em que transitam costumeiramente, embora haja os que montam guarda por aqui, sempre no nosso pé, embora ingênuas pinturas os ponham, velando-nos, atrás da cama, que também é o lugar preferido dos alcoviteiros, alcovas que são, hoje, quase tão “imaginárias” como são anjos com tantas especificidades: um para cada dia, um para cada cor, um para cada intenção, quase um para cada imaginação - sorte (nossa) é que nem todos os homens, e nisso eu dou uma ajuda inestimável, têm imaginação suficiente para inventar anjos para todas as (suas) necessidades, até porque, se a tivessem, voltaríamos a ponto de partido, ou seja, necessidade que todos temos (de anjos), ao...TRONO.



terça-feira, novembro 01, 2011

AÍ O PAPAGAIO DISSE...












e rir é mesmo o melhor remédio, para que uma cura definitiva, se se pode passar a vida inteira rindo, cronicamente, e não em surtos irregulares, ainda que agudos, de gargalha?

E isso que digo aqui não é, mesmo que pareça, contradizendo o que ora digo, nenhuma piada, nem, mal disfarçada, propaganda dos Doutores do Riso: isto é só meu jeito sério de lançar mão de palavras fáceis, embora, daqui por diante, tudo vá-se complicar – e se tal complicação se refere ao corpo em questão, que bom!, porque assim será preciso muito mais remédio, doses generosas (ainda que se saiba o quanto a indústria – de remédios, de riso – lucra(m), e não lucra(m) tanto por ser(em) generosa(s)) de riso.

Pena que eu próprio já não tenha remédio, sem sequer uma “droga de graça”, espécie de amostra-grátis de uma velha anedota, agora, com nova embalagem, mesmo que eu tenha-me esforçado para sintetizar o riso em laboratório, no meu fundo de quintal. Porém, os efeitos colaterais dessas experiências risonhas, mas com a seriedade que exigem, foram uma tristeza só: o que é tristeza em dobro, pois, além de já serem essa tristeza, é ainda uma tristeza...só. Os resultados deixaram claro meu fracasso já no fato desse remédio ter causado lágrimas, quando se esperavam risos sequenciados (então, eu não desconfiava de que tanto se pode rir com os olhos, a quase os cerrar, quanto é possível chorar, por dentro, mantendo um sorriso nos lábios).

Dito desse jeito, soa a mentira – e talvez seja só um autoengano, como um desses placebos, miragem miraculosa num oásis feito de farinha, mas que, encontrando acolhida na vontade de se curar, passa a agir como se concentrasse em si dose elevada do princípio ativo.

É ou não é para se morrer de rir usar uma expressão assim: se rir já é o remédio, a esperança de dias melhores, só se pode dele morrer ou por se ter tomado um falso remédio (embora tenha-se rido com “verdadeira sinceridade”) ou por tê-lo feito (não o remédio, mas a sua ingestão) em doses erradas – de menos, a ponto de ter alertado os lábios para um novo riso a vir... E ele não veio, deixando os lábios na espera, na ilusão de uma sonora gargalhada a aliviar os males, ou doses exageradas, levando a um riso descontrolado, já que o valor desse remédio (alguns, mais ingênuos, ainda dizem que rir é de graça: mas a coisa não é bem assim) está não apenas em rir, simplesmente, e sim em também senti-lo em todas as suas sutilezas, não fazendo, como as crianças gostam (quando não gostam do remédio) de fazer, prendendo a respiração para não saborearem(!) os amargos da vida – adultos, quando têm testemunhas por perto e não podem dar-se ares de criança, preferem tomar o remédio, respirando fundo, de um gole só.

Aqui, é necessário acabar com certos mitos, mesmo que isso signifique desautorizar nossos avós, e até os avós deles, nossos não-sei-o-quê, alguns mitos que envolvem todas as terapêuticas: isso de que quem ri por último...só pode levar mesmo ao fim. O ideal é rir logo, de cara, não postergando a graça, não tendo medo de, sendo pioneiro, ser, posteriormente, imitado, até por imitadores sem muita graça, ou ainda de, rindo antes de todos os outros, parecer que tem o riso solto (um tipo de remédio liberado) ou que não entendeu, convenientemente, a piada.

Deixemos os sisudos de lados, guardando sua atitude calculadamente conspícua, fazendo-se de imunes a piadas vulgares, prendendo, no entanto, a gargalhada (como se faz com um remédio que, de imediato, deixa manchas na pele, mas que, ao se sentir seu efeito, fá-la, irremediavelmente, sadia)! Deixemos que torçam seu nariz (há remédios que não cheiram lá muito bem, como há perfumes que causam mal-estar)!

Ao sentirmos que é preciso nos medicar, gargalhemos, com vontade. Se quisermos nos prevenir, mantenhamo-nos em estado de graça, ainda que ver “doentes incuráveis” por aí não seja um bom motivo para se rir. Mas, lembremo-nos que há “doentes assim” que só o são por não terem coragem de rir, querendo, ao desfilar seus males, angariar certa solidariedade que esperam que venha a se expressar na decisão de abandonar o riso, como se desacreditasse nos remédios, juntando-se, como novos tristes, a eles, àquela sua tristeza (de dar dó), uma tristeza que não é “só” (só) porque eles, tristes, preferem ser tristes uns juntos dos outros.

E vendo que há gente assim, não dá uma vontade louca de rir, mesmo que não se esteja, nesse momento, precisando de remédio assim?!






sábado, outubro 01, 2011

EM QUE MUNDO NÓS ESTAMOS?!










rofetas parecem ser coisa nossa – e não estou afirmando que Sílvio Santos também o seja –, enquanto que do outro lado do mundo, lado que também conhece seus domingos, com as rotinas de sempre, os sábios, quando não são conhecidos, simplesmente (e a simplicidade, para eles, é já uma sabedoria), por sábios, são chamados de filósofos, sem se importarem, provavelmente, com uma maiúscula que os eleve, no nome, aos píncaros do saber: eu, só por conhecer tal palavra – píncaro – já me dou por satisfeito, exibindo meu conhecimento do mundo, enchendo a boca para mostrar o tanto que (já) sei.

É de lá, de desse lado que não é o de cá, que vêm palavras que, seja por virem de onde vêm, seja porque encerram, verdadeiramente, uma sabedoria, afirmam que O UNIVERSO NÃO TEM PREFERÊNCIAS: de cara, um alívio, pois se ele não tem gostos próprios, todos nós estamos, então, no mesmo barco, ainda que, por vezes, expansivo como é o universo, essa embarcação em que fomos colocados, a nossa revelia, pareça ora fazer água, estando à deriva, ora, sem que saibamos que horas são, que o barco segue – mas, para onde, afinal?

Como as primeiras impressões, contra as expectativas de alguns que se querem filósofos, só por serem as primeiras, não têm sempre razão, aquilo que se percebeu, de cara, pode se transformar, ao se virar de costas, olhando-se o verso dessa prosa. Não tendo preferências, o universo não conspira, necessariamente, a nosso favor, já que isso seria contradizer suas não-preferências.

Se uma fortuna se acumula, num prêmio que requer apostas para que se se aposse dele (e tal acúmulo, caso o universo tivesse preferências, eu diria, seria o cúmulo do seu sadismo), os desvalidos, tirando do bolso furado um troco que lhes fará falta, apostam, julgando que por serem assim, terão o universo a seu favor; e se veem, na fila dessa possibilidade, alguém que aposta alto, sem que isso lhe faça grande falta, com a perspectiva de ter ainda mais (o que lhe permitirá apostar cada vez mais), os desvalidos, intimamente, como se conspirassem de si para si, acreditam que, já tendo o que têm aqueles outros, eles próprios têm, nessa fila, prioridade – mas, como se sabe, O UNIVERSO NÃO TEM PREFERÊNCIAS.

Se se ama (e não a si), e esse amor continuado não encontra a devida correspondência, numa associação entre amor e dor que vai além da pobre rima, encontrando-se quem, julga esse amante contumaz, conforma-se com sua maneira de amar, concentrando em si, esse objeto, a imagem que faz do amor(-)perfeito – que, sabem disso mesmo os botânicos amadores, não é nenhuma flor –, observando, em volta, quem dá tão pouco valor ao amor, acredita, sim, que é para si que aquele (objeto do amor) existe, e para mais ninguém, até apelando para certas(?) forças cósmicas a seu favor – mas, como se sabe, O UNIVERSO NÃO TEM PREFERÊNCIAS.

Se se passa, nesta vida – tanto do lado de cá, quanto do outro lado do mundo – por poucas e boas, querendo-se, com isso, dizer que se passou por muitas nada-boas, ou por algumas boas, no entanto, bem poucas, quase a não deixarem lembranças, e, de repente (algo que não faz qualquer sentido para o universo), acha-se numa boa, acredita-se que, dessa vez, a coisa não será pouca, mas, já sendo boa, será muita, será muito boa, por bastante tempo, não se podendo compreender que essa extensão das coisas boa e duradoura só ocorra para os outros que, indo de cá para lá, conhecendo não apenas este lado do mundo, mas também já o lado de lá, nunca passaram por poucas e boas, ou, se passaram, passaram pouco, quase a não lhes deixar lembrança – mas, como se sabe, O UNIVERSO NÃO TEM PREFERÊNCIAS.

Se eu fosse – profeta ou filósofo que não sou – o dono do mundo, o senhor do universo, também eu não teria preferências: para quê, se sou o que sou? Como não, não que não seja o que sou, mas, como não sou, não sendo o que não sou, dono de nada, senhor de coisa nenhuma tenho, sim, minhas preferências: isso, no entanto, não vale de nada; não interfere na ordem das coisas, no andar da carruagem, no girar do mundo, no passar do tempo, nem nas não-escolhas do universo – que, como se sabe, NÃO TEM PREFERÊNCIAS.






quinta-feira, setembro 01, 2011

HÁ MALAS QUE NUNCA VÊM









inventor das malas com rodinhas talvez tenha sido, um dia, mala-sem-alça, não se descartando a real possibilidade de que tenha sido uma mala mesmo, igualmente “desalçada”, crendo que, quem sabe, com isso, deixaria de ser, por aplicado às (outras) malas as tais rodinhas, facilitando a vida até de outras “malas”, uma sem alça, porque para um mala, mesmo que se saiba da importância de um suporte pelo qual segurar as mala, ter alça significa muito mais do que uma necessidade elementar, quer dizer que esse mala não é sem alça, como dele se diz.

Eu, cá comigo, sem saber a que me dirijo, creio que as rodinhas, tão elogiadas, apesar dessa sua forma arredondada, fora dos padrões estéticos mais desejados, só conseguiram acrescentar a esses(as) malas o que elas já não tinha, ou seja, as alças, sem que, assim, malas-sem-alça, com elas, passassem a ser algo marcadamente diferente daquilo que são: malas!

Nostálgico como sou – e isso é um passo seguro para, em conversas futuristas, ser considerado, à parte a presença ou não da respectiva alça, um(a) mala –, não resisto em dizer bons tempos aqueles em que malas, caras, não eram descartáveis, embora ainda não tenhamos chegado ao ponto (será de ônibus?) de descartá-las, ao fim de cada viagem. Mas é que, antes, as malas duravam muito, chegando, quando não se extraviavam pelo caminho, a passar de pai para filho, ainda que, acesas então outras expectativas quanto à herança paterna, ao se saber do espolio, lá consigo, o herdeiro, mal contendo a decepção, pensasse, a respeito do autor desse testamento: que mala!

E já que me fiz, aqui, mala, e tão pesada que não adiantaria muito ter alça, valendo-me das rodinhas, estufo ainda mais ao recuar no tempo, sem chegar, contudo, ao tempo das diligências, mas parando naquele em que mala, na verdade, chamavam-se de baús: e como ninguém pensou em lhes acrescentar uma alça, o que, à época, poderia significar um avanço comparável à invenção da roda – sem falar, porque isso já seria quase uma experiência de ficção científica, dada a distância no tempo, das rodinhas, que fariam um bem enorme, se não aos baús, a quem, então, os carregava, sem sequer conhecerem, em tais dias, para murmurarem, entredentes, tendo como alvo o dono do baú, a palavra “mala”.

Agora, é assim. De cá para lá, ou ao contrário, sem que isso altere, significativamente, o sentido em que se anda, rodinhas para todos os lados; malas sendo arrastadas por uma mão, enquanto que com a outra se arrasta um pirralho qualquer, sem alça, e que nem tem rodinhas, para facilitar esse transporte – um evidente erro de cálculo de quem inventou os pirralhos.

Como não fui eu que inventei as malas, como não tenho pirralho para carregar, como não tenho com que lutar contra as rodinhas, nem tenho coragem de levantar bandeira a favor dos baús, sem também, a essa altura, expectativa de alçar vôo, deixo-me arrastar pelo tempo: às vezes, é como se eu tivesse, em mim, rodinhas, deslizando, sem perceber os atritos; noutras, são tantos os deslizes que, aos solavancos, até o tempo, por me considerar tão sem alça, começa a me deixar de lado, com o risco de vir a acabar, enquanto dure o material da mala de que sou feito, num achados-e-perdidos qualquer.






segunda-feira, agosto 01, 2011

LÁ-LÁ-LÁ-LÁ









stando aqui, e sempre com esta minha cabeça em outro lugar, desejo, porque assim será melhor para mim, estar lá, mesmo que aqui já me encontre bem. Deixo-me, então, levar pela cabeça e, abandonando as garantias d’aqui, vou, se medir os riscos dessa viagem, como se entrasse, de cabeça, numa aventura, incerta como são, por definição, as aventuras, por mais que se as cerque com cuidados, mesmo é para lá.

Passemos, por ora, por cima do percurso, dos seus acidentes – das quedas eventuais e dos levantares necessários ao seu devido prosseguimento –, e demos já como terminada a viagem. Então, encontro-me aqui, quer dizer, lá, esse lugar a que assim chamava, quando eu estava ainda lá, ou seja, naquele lugar chamado, então, de aqui. Do lado de cá, aqui, num lugar que já fora lá, agora, desejo voltar para lá – como se eu já não estivesse aí –, mesmo sabendo que esse tal lá é só o nome, a distância, daquele velho conhecido aqui, desconfiando, inclusive, de que, chegando lá, e o chamando, de novo, de aqui, poderei, como preso de um círculo, desprezando a segurança, apesar de já ter feito esse caminho, sonhar, novamente, com o que chamarei, então, de lá, e que não passa deste aqui, deste lugar em que ora estou, tendo, como o fiz, saído de lá por não gostar daquele aqui, aspirando a este aqui que via, de lá, como um lá promissor.

Dito assim, fica provado que não tenho mesmo a cabeça (muito) no lugar: mas, eu não a tenho é sempre no mesmo lugar, porque, afinal, se há o que pode criar raízes, devem ser os pés, pela proximidade com o chão, e não a cabeça, que, pela aproximação, deve estar nas nuvens.

A vida de todos nós é um contínuo lá-e-cá, ainda que se leve uma vida lenta, sem tantas idas e vindas, pois desejar o lá daqui e, de lá, aqui, desejar, insistentemente, o lá, velho aqui de antes da partida, é uma constante, e podemos fazer isso dentro do nosso próprio quarto, sem nos deslocarmos, sem, aparentemente, sairmos do (nosso) lugar, sem arrancarmos raízes, pé ante pé, bastando que a cabeça permaneça onde está, no mesmo lugar, e que é não estar sempre aqui ou lá, mas lá e cá, cabeça nas nuvens, sempre a sonhar com um lugar que seja melhor.

Onde, então, a alegria de viver, diante dessa eterna insatisfação com o lugar em que se está? Ela talvez esteja no meio do caminho. Não exatamente na metade dessa estrada, e sim entre o aqui ao qual, estando lá, de lá haveremos de chamar, e o lá, visto, assim, daqui.

Quanto maior a distância entre este aqui e aquele lá, ou, mudando tudo de lugar, para tudo igual ficar, entre aquele lá e este aqui, mais possibilidade de se se alegrar com o caminho há, não esquecendo, contudo, que elastecer a distância pode aproximar-nos não só das alegrias, como das surpresas desagradáveis – e, nesse caso, se estivermos ainda próximos daquele aqui recém-despedido, e a distância, muita até, daquele lá onde pretendemos chegar, pode-se voltar para o aqui, embora, por mais perto que já estejamos, chamaremos, de onde estivermos, de lá. No caso de já termos andado muito e já vencido boa parte do caminho, se as surpresas não nos agradarem, tão próximas de lá, e mais sensato (ao menos, para uma cabeça que esteja no seu devido lugar) nos apressarmos, para logo estarmos lá, batizando, então, esse lugar de aqui, e aí fincando nossa bandeira.

Porém, com ou sem surpresas (se forem as mesmas, já não há de nos surpreender), lá, se o desejo de voltar para aquele conhecido aqui for grande, eis-nos com os pés na estrada, cabeça, resistentemente, nas nuvens, e pé sem raízes criar.

Incessante vaivém! O que daí de pode tirar como lição? Com a cabeça que tenho, jamais no seu lugar, que não se espere que eu tenha aprendido coisa alguma para aqui contar – melhor é deixar isso, de uma vez por todas, para lá. Também não adianta refazer os meus passos, partindo de um aqui, em direção a um lá, porque cada pé, enraizado na própria história, faz sempre seu caminho, ainda que percorra uma estrada que não seja já tão original.

É preciso que cada um de nós viva, aqui, seus próprios desejos de chegar lá; de, lá, voltar para aquele lá/aqui, e, assim, ir pavimentando mais um caminho. É verdade que nem todos precisam não ter, como eu, a cabeça no lugar, mas é interessante não deixar de considerar que desejar e ter a cabeça no lugar é como criar profundas raízes aqui, sem nunca ter ido lá: uma segurança para os pés, sem dúvida, no entanto, juntamente com eles, tão bem fixados aí, ficam o tronco e a cabeça: do tronco, pode-se até o peito sossegar, mas a cabeça, nas nuvens, tão perto de lá, não há de se contentar e, sem poder sair de onde está, quererá estar sempre em outro lugar.






sexta-feira, julho 01, 2011

oDIAda LIBERDADE










erder a conta” é quase sempre uma expressão meramente retórica, a não ser, talvez, para náufragos presos numa ilha ou para presos ilhados, mesmo que em terra firme, dos seus semelhantes ainda em liberdade – porque as celas estão cheias de “náufragos” a eles iguais. O preso em questão já não se lembrava da primeira vez que fora apresentado, sem nenhuma cerimônia, nesse rito de iniciação, ao xadrez no qual haveria, com o tempo, além de sucessivas fugas e recapturas, de se tornar algo bem próximo de um mestre nesse “jogo”.

Sem conhecer filosofias que legitimassem a fuga como um ato próprio (sinal de uma psicologia saudável) à sua condição de preso, fugir a primeira vez, e foi capturado; fugiu outras (ele diz que dessas vezes já perdeu a conta, parando, não sabe exatamente em que vez, de fazer essa contabilidade nas paredes da cela, já sobrecarregadas com os primários e primeiros registros do tempo, seja do tempo já corrido, seja do tempo que ainda falta, quem sabe, para uma outra fuga, com sua, quase consequente, recaptura), e foi igualmente reconduzido ao que parecia mais seu (verdadeiro) lar do que o seu verdadeiro lar, a respeito do qual já nem se recorda se lá viveu, de verdade, mais se lembrando de suas prisões. Tanto que, quando lhe aparece na lembrança esse lar, envolto em névoas suficientes para que ele duvide de sua realidade, surge-lhe sempre com inverossímeis, a seu ver, paredes imaculadas, para ele, evidência confiável de que isso não é senão uma casa de fantasia onde nem mesmo o tempo passa, aumentando, assim, seu aspecto fantástico.

Das primeiras vezes, podia-se-lhe perdoar as fugas amadoras e o ser sempre apanhado, quase que imediatamente, sem que houvesse tempo sequer para que um outro preso – e o mundo está “cheio” deles – apagasse seus rastros, substituindo-os pelos próprios, em fuga, começando, do primeiro traça na parede, a contar o tempo, tal qual um relógio que, então parado, dispara, açoitado pela corda que lhe aplica golpes ritmados, a cada segundo.

Porém, com a sequência de fugas, como explicar, experiência acumulada, o insucesso em série desse preso? Aí é que está: será mesmo que ele não era bem-sucedido?

Vejamos! Embora dissesse para si que queria fugir, evitando contar isso para os outros (presos?), excluindo aqueles para os quais é necessário antecipar os planos para, através dos olhares mais covardes, sentir-se assim admirado, o que lhe revigora a força, eventualmente, combalida por tantas idas e vindas, tramando planos cada vez com menos furos, deixava, talvez inconscientemente, pistas a sua volta, atrás de si, possivelmente até a sua frente, pistas estas que terminavam por levar à sua renovada prisão, preso, a cada recaptura, com menos esforço.

Justificar essa loucura: como? Preso, para não ficar louco, precisa manter a esperança, acreditar no futuro e sonhar: depois de muitas noites, os sonhos eróticos já não atendem às suas necessidades, e passa a sonhar com uma orgia de liberdade, mesmo que, no íntimo, saiba que coisa assim não passa de fantasia. No entanto, ainda que com alguma segurança de não ser capturado, fora da prisão, fazer o quê, sem, aqui, sequer entrarmos em considerações “sociais” sobre oportunidade para ex-encarcerados.

Assim, ele precisa voltar, tanto quanto não pode deixar de tentar fugir; afinal, é isso que o tem ajudado a passar o tempo. E o (seu) tempo passou!... Passou tanto que, apesar dos anos extras como punição a mais por suas frustradas tentativas de se evadir da prisão, ele – quem diria! – cumpriu tudo o que a lei lhe exigiu. Agora, sem nos fixarmos nas portas fechadas que há de encontrar do lado de fora, é de se perguntar se ele não tentará arrombá-las, forçando assim sua volta, uma volta atrás, para detrás das velhas grades, carregadas com suas impressões digitais.

Livre, o ex-preso, não mais um condenado evadido, deixando atrás de si seu “lar” de paredes sujas (porque o tempo nem sempre joga limpo, e deixa marcas indeléveis), para onde, agora, ir, se já nem se recorda onde fica seu (verdadeiro?) lar, nem mesmo, depois de tanto fantasiar uma casa imaculadamente branca, se tem mesmo onde morar?

Sem precisar olhar para trás, sente falta do faro dos cães e das pisadas de seus captores habituais, ora pisadas macias, no começo, para o flagrar desprevenido, ora duras pisadas, quando os guardas e o preso faziam já o mesmo jogo de gato-e-rato, numa simbiose quase parasitária. Começa, então, a espalhar sinais, iludido de que, de surpresa, vão querer levá-lo de volta. Mas, nada! Tudo o que consegue é um guarda que dele se aproxima (seu coração de preso-fugitivo contumaz bate mais forte, diante de tal aproximação) e, com gentileza de ficção, pede-lhe que não suje a rua com as pistas que quer ali deixar, indicando-lhe um lugar onde poderá depositá-las, civilizadamente: o lixo.

Só os presos de primeira viagem se animam com o discurso sobre a liberdade de ir e vir; quem muito fugiu, com o tempo sempre no seu calcanhar, farejando até os artifícios cosméticos que são usados para enganar esse guarda-temporal, sabe que ir e vir é da natureza do homem, porém, não há verdadeira liberdade, se não se puder, não importando se se está ou não fugindo, ficar, dando um tempo nas fugas e nas prisões – que é do que é feita a liberdade de cada um de nós.






quarta-feira, junho 01, 2011

VÔ NÃO VOU










Intumesço, de repente, como um bonachão vovô mafioso, com suas bochechas com algodão, doce como ele só, mas capaz – e nisso, considerando-se que é tudo mesmo doce, talvez, não haja real contradição – de mandar bala, seja ele próprio a puxar o gatilho, pois, afinal, apesar de tão poderoso, se preciso for, não manda, e sim obedece, a si próprio (foi assim que se tornou poderoso), não sendo nenhum maria-mole, além do que, puxar um gatilho assim, disparando um ato, a seu ver, necessário, não exige lá tanta força, nem mesmo de um velho avô, como aquela que nos é cobrada, quando queremos, em qualquer idade, num estica-e-puxa, fazer uma bala...de coco, às vezes, exigindo, pelo esforço que requer, o empenho de toda a “famiglia”; no entanto, se não for, rigorosamente, indispensável que seja ele mesmo a protagonizar esse mandar-bala, em pessoa, delega, sem, preferencialmente, delegados por perto (a não ser os que já estejam bem pagos, ou os que, de tão maria-mole, nem precisam receber qualquer pagamento), essa responsabilidade a outros, ficando, assim, o sujeito com a arma do crime: e quão incriminadora pode ser uma mão com vestígios de bala...de coco.

Se inchei assim, não foi, esclareço, por excesso de doce (ando tão amargo!), nem de algodão-doce (ando tão pesado!), nem de balas de coco (não ando com força para isso!), nem foi por excesso de marias – moles ou (de) uma dureza só: é que fiquei cheio...de mim mesmo.

E se isso, por um lado, abre espaço – talvez a brecha que muitos estejam esperando – para que se pense que, antes, antes de me encher (de mim mesmo), eu era um grande vazio (ao menos, era grande), por outro, é-se, seguindo-se ainda a mesma lógica de doçaria de esquina, obrigado a se concluir que esse eu, o que me enche tanto (será que já estou tão cheio de mim assim?), a ponto de me deixar com ares de poderoso, posando de chefão, quando não passo de um subordinado (a mim mesmo até), é porque aquele tão vazio era enorme, quase maior do que eu.

Cheio a não poder mais (quero mais poder!), saio por aí assoviando um velho tema de cinema, esquecido dos meus crimes, alguns, cometidos com uma doçura exemplar, outros, dado o amargor, deixando a impressão de que foi doce em excesso, provocando, assim, um travo na língua.

Quem me vê passar, passando por mim, não reconhece a canção, não me reconhece, e, apesar de subordinado a tantos chefes, mandando bala quando um deles assim o manda fazer, sem ligar para os vestígios que ficarão em suas mãos, ao se sentirem tomados por um grande vazio (sem que isso os faça experimentarem a sensação de estarem cheios de si), olham para o alto, não em busca de uma salvadora promoção, que os faça também poderosos, mas, obedientes a uma hierarquia hierática, à espera das (boas) novas do Chefão.

Já eu, esgotada a partitura original, cabisbaixo por não conhecer outra trilha...musical, sigo, olhando o chão, tomado por um vazio que me enche, sem que, agora, sinta-se inchado. Porém, orgulhoso, para que não percebam, mesmo os que, costumeiramente, já não me notam, meus vãos, esse meu empacotamento a vácuo, insuflado por velhas imagens, distendo, ao seu limite, minhas bochechas: só que em vez de parecer poderoso, viro alvo de gozação.






domingo, maio 01, 2011

NÃO TIRE OS PÉS DO CHÃO










reparar uma armadilha requer conhecimento, e profundo, mesmo que a tal armadilha, antes de ser um poço cavado e camuflado, à superfície, para disfarçar o perigo iminente, seja mesmo um risco à flor da terra, talvez, nesse caso, contando com a autoconfiança de quem por esses caminhos anda, não considerando a possibilidade de que alguém, querendo lhe preparar uma armadilha, venha a fazê-lo assim, tão (aparentemente) à vista, buscando os riscos onde outros olhos, tomados por esse autoconfiante, não procuram.

A armadilha, em si, requer também sua própria engenharia – e se ela pode parecer bastante primária, em se a observando com atenção, desde que não seja aquele que nela caiu, porque, a essa altura (ou a essa profundidade), mais interessado estará em sair dessa do que em especular sobre o conhecimento rudimentar que a alimentou, há de se verificar o grau de inteligência que ela exigiu, ainda que, cheios de moralismo, venhamos a dizer que essa inteligência foi usada para o mal.

E o mundo, este mesmo por onde andamos, ora com mais confiança, ora com menos, por vezes, parece-nos uma grande armadilha, do exato tamanho do próprio mundo. Quando alguém prepara sua armadilha, sem que tenha qualquer intenção de ser sua vítima, vítima desse urdidos ardis, e obtém sucesso, o que significa dizer que sua presa em vista, atenta, quem sabe, para os lugares, deste mundo, menos prováveis, crendo ser daí que podem vir os perigos, e não para o que vai diante de seus olhos, cai, mesmo que a armadilha em questão, capturando a presa, alce-a, caímos nós também – ao menos, o predador da hora, o artesão que, manualmente, com cuidado quase de artista que não repete sua obra, levou a cabo a armadilha.

Caímos, ainda que, para todos os efeitos, continuemos de pé. Moralista! Já ouço as vozes que se levantam contra mim, até vindas de bocas que jamais pensaram – se bocas pensassem, quanto deixariam de falar! – em preparar uma armadilha, e não por falta de vontade, e não porque não acalentem tal desejo, no íntimo (o íntimo de todos nós é, entre todas, provavelmente, a maior de todas as armadilhas, aquela em que caímos, por mais que já tenhamos caído na mesma armadilha), mas por, sempre nesse íntimo-armadilha, manterem a esperança de que poderão lançar mão do argumento de jamais terem feito uma dessas, para escaparem ilesos de algum julgamento final.

É que, ao concebermos as (nossas) armadilhas, visando a uma vítima específica, abrimos, assim, um amplo espaço para que outros, feitos predadores como nós, façam das suas, vítimas, então, nós, potencialmente de tais armadilhas. E não fica nisso. Nós próprios, de tantos armarmos (armadilhas), de tanto as espalharmos por aí, nem sempre cuidando de registrar, com exatidão de cartógrafo, o ponto exato em que a pusemos, acabamos por esquecer algumas delas, e, num momento de tão autoconfiança, andando, concentrado nos perigos que podem surgir de onde menos se espera que eles dêem as caras, no passo seguinte, dado com a segurança com que se vem caminhando, sempre confiante, pomos o pé no laço, o nó se aperta, e lá ficamos nós.

O castigo maior, mesmo para os que se creem amorais (sem perceber a armadilha em que caíram, ao se crerem assim), é se dar conta de que aquela armadilha que nos ata, pelo pé, ou nos joga no fundo de uma cova – para não entrarmos, aqui, num interminável rol de armadilhas diversas –, leva nossa própria assinatura: e temos, então, de conviver, até sermos salvos, se o formos, com o desespero de sermos presa e o júbilo por termos realizado essa obra, que, sentimos em nós, é a eficiência em pessoa.






sexta-feira, abril 01, 2011

FÂMULOS









destruição da família!... Quantas vezes já se repetiu isso, tentando-se atribuir, ora à destruição (da família), ora à própria família (sem incluir a própria nessa destruição toda), destruída já ou em vias disso, a falência do espírito de sociedade, esta erguendo-se, segundo conceitos que mais parecem dogmas, sobre aquelas, sobre as famílias, incluindo a nossa, a que, entre as tantas que se vão destruindo, surge, se não como a única, ainda como inteira, sem que os olhos dos membros dessa família se voltem para as fissuras que, a outros olhares, já são evidentes sinais de um perigo iminente, preferindo a família se encastelar numa autoatribuída eminência, como se se sentir assim fosse capaz de, como massa apropriada, tapar os buracos, curar as rachaduras, remodelar o antigo sem, contudo, tirar-lhe aquele aspecto de tradição, que é o que lhe empresta o ar de...família.

Mas, afinal, que família é essa?

Se nos aventurarmos a dizer que é uma família clássica, com membros com funções definidas, arriscamos-nos a surgir anacrônicos; a até mais: como reacionários por, supostamente, não nos mostrarmos atentos para as diferenças, para a renovação dos papéis. Então, a família já é outra, já é uma que prescinde do estar junto, da obediência a uma autoridade sustentada, aqui, no provimento, única fonte, por vezes, de provisão, quando há tal fonte, e ali, no poder simbólico que ultrapassa o que sabemos, conscientemente, varando a inconsciência – e esta é um fundo de profundidade desconhecida, em que uma vara, aí entrando, não será capaz, por mais comprida, de nos dar noção, não exata, apenas aproximada, de onde estamos nos metendo ao cutucar o inconsciente com vara, por mais comprida, sempre curta.

Agora, vamos fantasiar um pouco! Deixemos que passem, diante de nossos olhos, retomando velhas experiências pessoais, ou fazendo nossas experiências de terceiros, reinventando-as, toda uma sequência: um jantar – pode ser um almoço –, família toda reunida, como se sua construção original, mesmo que isso contraria a natureza subtrativa do tempo, mantivesse-se intacta, tomando-se o cuidado de suprir uma ausência, para não deixar lugar vazio, com uma presença especialmente convidada, seduzida esta pelos apelos de que “já faz parte da família”. Cabeceira ocupada, cabeças desocupadas, ocupadas(?) apenas com distrações recíprocas. Pai com autoridade generosa. Mãe com modesta autonomia. Filhos em obediência transgressora (daria no mesmo se dissesse “em transgressão obediente”). Netos, se (já) houver, como reminiscência dos (próprios) filhos, por menos que os filhos, ora netos, se pareçam com seus pais, filhos do pai dessa família.

Na realidade, família é uma comunhão. Em verdade, hoje, o que chamamos de famílias, mesmo que a ela acrescentemos, antecipando-nos a possíveis contestações, “nova”, sem que saibamos, precisamente, dizer o que uma “nova família” (ou uma família nova) significa, o que tem de diferente, fora o passar do tempo, de famílias de outrora, não passa de um conjunto, algo frouxo, sem nós confiáveis, lassos nós, nós que jamais formam verdadeiramente laços, de individualidade que se reúnem, quando se reúnem, na impossibilidade de cada qual ter o seu canto, sem o aborrecimento da convivência.

Não que A Família anule os indivíduos que a formam, massacrando suas peculiaridades em nome de uma improvável convivência pacífica, porque, enfim, a paz (de uma família, de um individuo) não depende, exclusivamente, de uma livre e idiossincrática expressão de si mesmo. É que, agora, família é um nome genérico demais para um ausência quase total de similaridades: família são aqueles que vivem sob o mesmo teto; ou que guardam, ente si, a cor comum do sangue; ou que contam as mesmas histórias, com pequenas variações – o que pode não ser outra coisa se não o gosto pelos mesmos livros de ficção.

A base da sociedade, por mais que isso não seja caro a um discurso moralista, apologético, religioso, é, sobretudo, a aceitação do “contrato social”: esse ceder aqui, cobrar acolá, mantendo-se num equilíbrio precário, mas suficiente para se garantir um mínimo de convivência – se pacífica, isso já é outra história, sendo talvez, a tal paz, a maior das ficções. E um contrato assim, de adesão, do tipo aceitar-ou-largar, às vezes, é duro de se tolerar, particularmente quando se julga ceder demasiado em relação a uma contrapartida, ainda sob o próprio julgamento, aquém.





terça-feira, março 01, 2011

BACKUP









s mais “artísticos”, mesmo que não saibam dizer muito bem qual a “sua arte” nesta vida, torcem o nariz, como se, trancados num conservadorismo aristocrático, esconjurassem qualquer vanguarda (às vezes, só a releitura de uma “antiga velharia”), para a inteligência artificial, não aceitando nenhuma forma de pensamento (e creio poder, para não abusar das aspas, chamar assim) artificial – mas, para os mais conservadores, inclusive quanto ao uso das palavras: da inteligência artificial.

Isso é coisa de computador. E para mostrarem o perigo que é sair das (nossas) humanas configurações, um sistema caracteristicamente falho, sendo o uso da (nossa) humanidade, como desculpa para as falhas, uma das nossas mais marcantes características, lembram-nos de uma certa Odisseia no Espaço, sem perceberem, trancados em sua inteligência natural, o quanto, com isso, ao tempo em que ratificam a excelência do homem, quando este consegue isso, para a arte, legitimam a máquina.

Sem, no entanto, poderem escapar ao uso das máquinas, em geral, do computador, em particular (e para quanto não serve um, em "particular"!?), lançam mão, exibindo um tablet de última geração, espécie de vanguarda que, ao fim do dia em que nasceu, já dá sinais de senilidade irreversível, e argumentam que, ao menos, usam-no em nome da arte, sem, contudo, que ainda se saiba qual é (qualé?!) mesmo essa sua arte: meros artifícios!

Por mais que falem de uma certa pedra – e o nome é esse mesmo –, herança dos antepassados, sobre a qual, com “lápis” apropriado, escrevem, nesse tipo de caderno pré-papiro, embora já de um tempo em que o papel era comum, sendo uma tecnologia bem avançadinha, não deixam de criar pontos de restauração, para o caso de algo acontecer ao sistema e ser necessário voltar-se atrás.

E onde, se não em nós próprios, nessa máquina que somos, e não falo isso apenas em relação ao “hardware”, ao corpo, dissociando-o daquilo que, com nomes diversos, ora laicos, ora nem tanto, ora ainda muito nem-tanto, crê-se como sendo a alma do negócio que somos, encontramos, com updates agendados, esse voltar atrás, esse ir lá, recuando, açoitados pelo desejo de poder, recuperado o ponto anterior, (re)começar dali, esquecendo-nos de tudo o que aconteceu a partir daquele ponto, prometendo-nos, apesar da facilidade que um novo programa nos oferece, abrir qualquer aplicativo, concluindo que é melhor permanecer no certo(?), o que não elimina a possibilidade de vírus, já que, então, confunde-se o certo com o duvidoso que é uma situação, mesmo que perigosa, tão-só porque a ela já nos adaptamos, do que, como se máquinas e homens não fossem alimentados de riscos “incalculáveis”, bancando os avançados, os vanguardistas, querermos dá um passo (muito) adiante, fiando-nos nas promessas, em língua estrangeira ou mesmo em vernáculo, que nos cobram, ao fim, um ritual “aceito”, “concordo”: OK!

Deixando, ora, a máquina de lado (porque vimos, ao lado, uma outra, que faz a nossa parecer uma pedra-de-escrever), envergonhamos-nos de criar pontos-de-restauração, e mais ainda de tentarmos, mesmo sabendo que aquela memória é pura arte da linguagem, voltar atrás, com toda uma leva de conservadores que não acreditam em backup, de outros tantos vanguardistas que não admitem que, com tanta arte à frente, queira-se voltar atrás, recuperando-se um ponto que, por já passado, morto está.

E todos sabemos o que pode acontecer. Sei lá com que tipo de inteligência agindo – se a mais natural, com seus vícios típicos, ou se a artificial, com seus riscos característicos (não é mesmo, HAL?) –, mas, diante de uma falha, os com cabeça mais no lugar ou desligam a máquina e, artificialmente, dizem que não vão por ela se deixar dominar, recorrendo, sem se darem conta disso, a outra diversão, a outra máquina, ou, os que são cabeça-quente, têm de lutar contra a vontade de atirar a máquina pela janela, ou contra a parede, mas, pensando bem, o que mostra que esse cabeça-quente tem a sua cabeça no lugar, lembrando-se (recuperando, em sua memória, um certo ponto) o quanto isso lhe custou, o quanto há de lhe custar, desliga a máquina, e tenta, com graus variáveis de sucesso, também se desligar.






terça-feira, fevereiro 01, 2011

CIRANDA, CIRANDINHA








amor (eterno) é uma dessas brincadeiras de criança que depois se torna séria -e só é brincadeira para nós que a vemos de fora da roda, porque lá dentro, ou mesmo no entorno da brincadeira, é já, desde sempre, séria, mesmo que gire aos impulsos dos risos, às chicotadas de lancinantes gargalhadas.

Quando, passado esse tempo que se chamou de depois, a coisa séria já ficou e quer-se tomá-la, beber esse amor eterno, de um só gole, como que de brincadeira, passou da hora de brincar com coisa assim tão séria. E muito (mais) depois, uma quantidade de tempo que varia de uma pessoa para outra, quando já não há (mais) tempo - mas este amor não era eterno? - para essas brincadeiras, só mesmo sendo criança para se levá-la a sério, para, seriamente falando, se levar esse amor adiante.

E sem ter (mais) certeza, aquela de antes, de sua eternidade, não se sabe se, no caso da coisa ir à frente, numa tentativa de prolongar uma brincadeira que já parece finda, o amor resistirá muito tempo ainda, quase uma eternidade para o padrão dos casos em questão, ou se só falta dar (mais) um passo para que a corda esticada arrebente na cara, gritando na face aquilo que já se sabia, a menos que se insista, a essa altura, em acreditar no eterno das brincadeiras, como uma criança que se crê com todo o tempo, que não vê razão para empregá-lo em outra coisa, sério como lhe é brincar assim, e mesmo quando as mãos francamente já se desataram, desfazendo a roda, dispersando o riso-combustível e as gargalhadas-chicotadas, ainda quer porque quer, fazendo coro consigo mesma, atando-se pelas suas próprias mãos num abraço impossível, que o eterno fale alto seu nome, de modo imperativo, subjugando a "temporalidade" dos amores.

E não falo, como pode parecer, de amores infantis - que estes são mesmo para as partes envolvidas uma brincadeira que atende à necessidade de não se ficar parado nos intervalos das brincadeiras. Falo de amores com sobrenome de "Sério", uma brincadeira com as palavras; falo desses amores que quando acontecem, é como se sozinho fizessem roda em torno de nós, pondo-nos no centro, transfigurando o sentido comum das chicotadas, bem como o alcance habitual das gargalhadas...

E de nada adianta recorrer àquela carta na manga e em que está escrito, providencialmente, que em todos nós, por mais sérios, acomoda-se, num canto, silenciosa, uma criança, prestes a despertar, se para ela se cantar uma modinha, uns versos de roda: pode ser frustrante acreditar numa criatura que jaz, viva, perdida num vão, calada, domesticada (e de uma criança assim é para se desconfiar) a ponto de só dar as caras se se a cutucar com a vara curta de uma canção nostálgica.

Não há crianças em nós quando já deixamos de ser uma. Se houvesse, deveria haver desde sempre, desde quando ainda se era uma criança: uma dentro da outra - e isso não faz sentido, mesmo para uma brincadeira infantil. O argumento de que ela, a criança, só entra, a sério, nessa brincadeira muito tempo depois, quando já não é uma, pois era preciso ser criança para poder se a guardar em si, é quase uma brincadeira, ainda que se simule seriedade ao dizê-lo.

Encaremos os fatos: para a criança, tudo é sem tempo, e um amor eterno é tão brincadeira quanto os intervalos para o que lhe é sério de verdade - a brincadeira; e para quem já não o é, nada de "criança dentro de mim", sendo melhor, mesmo que não seja nada divertido, prestar atenção ao tempo, o que não significa olhar a todo instante o relógio ou a posição do sol, que roda, numa brincadeira que enche os olhos de lágrimas.

Atentar para o tempo é brincar de amor eterno sem a seriedade de querer que a roda dure para sempre, de querer segurar a todo instante as mãos que querem se desprender só para não ver a brincadeira se desfazer. Em criança, é comum ouvirem-se vozes de fora da roda dizendo que há tempo para tudo, e, crianças, não entendemos. Depois, confrontados com o fato, inexorável, de que a eternidade ficou nas mãos daquela criança, queremos ouvir que ainda há tempo - mas como, caídos naquele engodo, só queremos dar ouvidos à "nossa própria criança", tomamos a sério palavras que eram só de brincadeira.





sábado, janeiro 01, 2011

ASSÉPTICA ARTE DE UM CINEMA PULGUENTO



ue a vida – a nossa, claro, porque ela, em sua generalidade, está acima (custo de vida!) das possibilidades do mais poderoso dos empresários do ramo – dá um filme, isso é sabido, desde que o mundo é mundo: e, sabemos, o mundo, embora criado oficialmente há bem mais, numa espécie de devaneio estético-filosófico de um Deus recém-incriado, apesar da atemporalidade que o reveste com uma roupa desnecessária a Quem, por natureza, é tão “absconditus”, só passou mesmo, este nosso mundinho, com as figuras que lhe são peculiares, a existir a partir do cinema.


E não adianta querer fazer uma acurada genealogia do cinema, como se a buscar em sua ascendência um traço que negue minha afirmação, como, por exemplo, a de que o cinema só existe por causa de outras artes, atribuindo-lhe (e a mim, por extensão, ainda que sempre tenha sido um menino conservador, sem ousadias fora da fantasia, o que, por ironia, pode ter-me feito experimentar o ousado em seu paroxismo) certos artifícios para figurar, hoje, à revelia de quem o alimentou em outros dias, como a verdadeira origem do mundo.


A depender de quem a faz – a vida –, faz-se um cinema diferente. Uns, jovens ao natural ou apenas usando o disfarce, quase alegórico de tão pouco naturalista, que usam os velhos cineastas, a vida se apresenta como um mundo de provocações estéticas, de arrebatamentos formais, de inconformismo artístico, de desconfiança filosófica (a dúvida metódica cartesiana se metendo a artista de cinema). Ou então o mundo que temos é uma daquelas histórias que, escravas de uma cronologia “sem tempo” para divagações, segue seu rumo, sempre passo a passo, sem pulos, sem tropeços, copiando, à exaustão de um realismo cansativo, nossos próprios caminhos, ainda que o nosso conheça lá seus tropeços, sem direito a refazermos a cena e sem a possibilidade de, na montagem, essa (quase) queda, por encanto (da fantasia que é o cinema), simplesmente, desaparecer: e esse tique-taque monótono, apesar de reclamações eventuais, querendo mais ação, nos dá a sensação de conforto, chegando mesmo, eventualmente, a nos fazer cochilar.


Neófitos dizem, quase a oferecê-la de graça, que a própria vida daria um filme, sem cogitarem, pouco afeitos ao mecanismo do cinema para além da ilusão de movimento, do potencial de mercado de sua história, como um fanático que empenha todos os seus bens (talvez, penhorando-os) para financiar o “filme da minha vida”, contentando-se em vê-la, agora, filmada, mesmo que seja seu único espectador, até, numa arrogância a que chamará de senso crítico, desdenhando do público em geral, atribuindo-lhe pouca sensibilidade, nenhuma inteligência para se desapegar de outras histórias (para este, sem interesse maior), permitindo-se, assim, assistir a um filme de verdade, ainda que toda vida contada no cinema, por mais bem documentada, seja sempre uma expressão de mentira.


“Fita” todos nós, de um ou outro jeito, fazemos, mesmo os que acham, ainda tão recém-iniciados neste mundo, que fazer fita é coisa de operário da indústria têxtil, com larguras variadas, podendo ser uma fita curta ou (de) longa metragem. Histórias todos nós contamos: alguns, nos dedos. Já cinema se tornou coisa para profissional: e há um mundo deles.


Viver é para poucos; mas, felizmente, são poucos os que sabem disso, e, ignorando o fato, como se assistissem a um lançamento (quando o filme vem sendo exibido desde que o mundo é mundo), vão vivendo...