sábado, janeiro 01, 2011

ASSÉPTICA ARTE DE UM CINEMA PULGUENTO



ue a vida – a nossa, claro, porque ela, em sua generalidade, está acima (custo de vida!) das possibilidades do mais poderoso dos empresários do ramo – dá um filme, isso é sabido, desde que o mundo é mundo: e, sabemos, o mundo, embora criado oficialmente há bem mais, numa espécie de devaneio estético-filosófico de um Deus recém-incriado, apesar da atemporalidade que o reveste com uma roupa desnecessária a Quem, por natureza, é tão “absconditus”, só passou mesmo, este nosso mundinho, com as figuras que lhe são peculiares, a existir a partir do cinema.


E não adianta querer fazer uma acurada genealogia do cinema, como se a buscar em sua ascendência um traço que negue minha afirmação, como, por exemplo, a de que o cinema só existe por causa de outras artes, atribuindo-lhe (e a mim, por extensão, ainda que sempre tenha sido um menino conservador, sem ousadias fora da fantasia, o que, por ironia, pode ter-me feito experimentar o ousado em seu paroxismo) certos artifícios para figurar, hoje, à revelia de quem o alimentou em outros dias, como a verdadeira origem do mundo.


A depender de quem a faz – a vida –, faz-se um cinema diferente. Uns, jovens ao natural ou apenas usando o disfarce, quase alegórico de tão pouco naturalista, que usam os velhos cineastas, a vida se apresenta como um mundo de provocações estéticas, de arrebatamentos formais, de inconformismo artístico, de desconfiança filosófica (a dúvida metódica cartesiana se metendo a artista de cinema). Ou então o mundo que temos é uma daquelas histórias que, escravas de uma cronologia “sem tempo” para divagações, segue seu rumo, sempre passo a passo, sem pulos, sem tropeços, copiando, à exaustão de um realismo cansativo, nossos próprios caminhos, ainda que o nosso conheça lá seus tropeços, sem direito a refazermos a cena e sem a possibilidade de, na montagem, essa (quase) queda, por encanto (da fantasia que é o cinema), simplesmente, desaparecer: e esse tique-taque monótono, apesar de reclamações eventuais, querendo mais ação, nos dá a sensação de conforto, chegando mesmo, eventualmente, a nos fazer cochilar.


Neófitos dizem, quase a oferecê-la de graça, que a própria vida daria um filme, sem cogitarem, pouco afeitos ao mecanismo do cinema para além da ilusão de movimento, do potencial de mercado de sua história, como um fanático que empenha todos os seus bens (talvez, penhorando-os) para financiar o “filme da minha vida”, contentando-se em vê-la, agora, filmada, mesmo que seja seu único espectador, até, numa arrogância a que chamará de senso crítico, desdenhando do público em geral, atribuindo-lhe pouca sensibilidade, nenhuma inteligência para se desapegar de outras histórias (para este, sem interesse maior), permitindo-se, assim, assistir a um filme de verdade, ainda que toda vida contada no cinema, por mais bem documentada, seja sempre uma expressão de mentira.


“Fita” todos nós, de um ou outro jeito, fazemos, mesmo os que acham, ainda tão recém-iniciados neste mundo, que fazer fita é coisa de operário da indústria têxtil, com larguras variadas, podendo ser uma fita curta ou (de) longa metragem. Histórias todos nós contamos: alguns, nos dedos. Já cinema se tornou coisa para profissional: e há um mundo deles.


Viver é para poucos; mas, felizmente, são poucos os que sabem disso, e, ignorando o fato, como se assistissem a um lançamento (quando o filme vem sendo exibido desde que o mundo é mundo), vão vivendo...