sexta-feira, julho 01, 2011

oDIAda LIBERDADE










erder a conta” é quase sempre uma expressão meramente retórica, a não ser, talvez, para náufragos presos numa ilha ou para presos ilhados, mesmo que em terra firme, dos seus semelhantes ainda em liberdade – porque as celas estão cheias de “náufragos” a eles iguais. O preso em questão já não se lembrava da primeira vez que fora apresentado, sem nenhuma cerimônia, nesse rito de iniciação, ao xadrez no qual haveria, com o tempo, além de sucessivas fugas e recapturas, de se tornar algo bem próximo de um mestre nesse “jogo”.

Sem conhecer filosofias que legitimassem a fuga como um ato próprio (sinal de uma psicologia saudável) à sua condição de preso, fugir a primeira vez, e foi capturado; fugiu outras (ele diz que dessas vezes já perdeu a conta, parando, não sabe exatamente em que vez, de fazer essa contabilidade nas paredes da cela, já sobrecarregadas com os primários e primeiros registros do tempo, seja do tempo já corrido, seja do tempo que ainda falta, quem sabe, para uma outra fuga, com sua, quase consequente, recaptura), e foi igualmente reconduzido ao que parecia mais seu (verdadeiro) lar do que o seu verdadeiro lar, a respeito do qual já nem se recorda se lá viveu, de verdade, mais se lembrando de suas prisões. Tanto que, quando lhe aparece na lembrança esse lar, envolto em névoas suficientes para que ele duvide de sua realidade, surge-lhe sempre com inverossímeis, a seu ver, paredes imaculadas, para ele, evidência confiável de que isso não é senão uma casa de fantasia onde nem mesmo o tempo passa, aumentando, assim, seu aspecto fantástico.

Das primeiras vezes, podia-se-lhe perdoar as fugas amadoras e o ser sempre apanhado, quase que imediatamente, sem que houvesse tempo sequer para que um outro preso – e o mundo está “cheio” deles – apagasse seus rastros, substituindo-os pelos próprios, em fuga, começando, do primeiro traça na parede, a contar o tempo, tal qual um relógio que, então parado, dispara, açoitado pela corda que lhe aplica golpes ritmados, a cada segundo.

Porém, com a sequência de fugas, como explicar, experiência acumulada, o insucesso em série desse preso? Aí é que está: será mesmo que ele não era bem-sucedido?

Vejamos! Embora dissesse para si que queria fugir, evitando contar isso para os outros (presos?), excluindo aqueles para os quais é necessário antecipar os planos para, através dos olhares mais covardes, sentir-se assim admirado, o que lhe revigora a força, eventualmente, combalida por tantas idas e vindas, tramando planos cada vez com menos furos, deixava, talvez inconscientemente, pistas a sua volta, atrás de si, possivelmente até a sua frente, pistas estas que terminavam por levar à sua renovada prisão, preso, a cada recaptura, com menos esforço.

Justificar essa loucura: como? Preso, para não ficar louco, precisa manter a esperança, acreditar no futuro e sonhar: depois de muitas noites, os sonhos eróticos já não atendem às suas necessidades, e passa a sonhar com uma orgia de liberdade, mesmo que, no íntimo, saiba que coisa assim não passa de fantasia. No entanto, ainda que com alguma segurança de não ser capturado, fora da prisão, fazer o quê, sem, aqui, sequer entrarmos em considerações “sociais” sobre oportunidade para ex-encarcerados.

Assim, ele precisa voltar, tanto quanto não pode deixar de tentar fugir; afinal, é isso que o tem ajudado a passar o tempo. E o (seu) tempo passou!... Passou tanto que, apesar dos anos extras como punição a mais por suas frustradas tentativas de se evadir da prisão, ele – quem diria! – cumpriu tudo o que a lei lhe exigiu. Agora, sem nos fixarmos nas portas fechadas que há de encontrar do lado de fora, é de se perguntar se ele não tentará arrombá-las, forçando assim sua volta, uma volta atrás, para detrás das velhas grades, carregadas com suas impressões digitais.

Livre, o ex-preso, não mais um condenado evadido, deixando atrás de si seu “lar” de paredes sujas (porque o tempo nem sempre joga limpo, e deixa marcas indeléveis), para onde, agora, ir, se já nem se recorda onde fica seu (verdadeiro?) lar, nem mesmo, depois de tanto fantasiar uma casa imaculadamente branca, se tem mesmo onde morar?

Sem precisar olhar para trás, sente falta do faro dos cães e das pisadas de seus captores habituais, ora pisadas macias, no começo, para o flagrar desprevenido, ora duras pisadas, quando os guardas e o preso faziam já o mesmo jogo de gato-e-rato, numa simbiose quase parasitária. Começa, então, a espalhar sinais, iludido de que, de surpresa, vão querer levá-lo de volta. Mas, nada! Tudo o que consegue é um guarda que dele se aproxima (seu coração de preso-fugitivo contumaz bate mais forte, diante de tal aproximação) e, com gentileza de ficção, pede-lhe que não suje a rua com as pistas que quer ali deixar, indicando-lhe um lugar onde poderá depositá-las, civilizadamente: o lixo.

Só os presos de primeira viagem se animam com o discurso sobre a liberdade de ir e vir; quem muito fugiu, com o tempo sempre no seu calcanhar, farejando até os artifícios cosméticos que são usados para enganar esse guarda-temporal, sabe que ir e vir é da natureza do homem, porém, não há verdadeira liberdade, se não se puder, não importando se se está ou não fugindo, ficar, dando um tempo nas fugas e nas prisões – que é do que é feita a liberdade de cada um de nós.