quinta-feira, dezembro 01, 2011

O JOGO DO PODER














Hierarquia dos coros dos anjos,
estabelecida pelo pseudo-Dionísio, no século VI


TRONOS
Rodas de fogo com asas em volta, cheia de olhos


ão é na cabeça em que o poder se assenta, embora seja por aí que ela passe, repasse, se acomode, ora criando dores, ora, mesmo ainda sem o poder de fato, dando prazer, só de pensar, apesar de ser ela o lugar ideal para se ser cingido por uma coroa, símbolo costumeiro de certo tipo que manda, extrapolando essa imagem em particular para se tornar uma marca, metáfora que seja, do atributo, às vezes auto-outorgado, de fazer e desfazer, em que pese alguns fazerem (o) bem e outros, podendo ser os mesmos, desfazerem (d)o mal.

Não está nas mãos de ninguém ter poder ao seu bel-prazer, ou, o que é raro, abrir mão dele. E o cetro que eventualmente carregam, ora mudado em espada de fio sempre recomposto, ora, o que nem sempre é uma mudança para melhor, em “pena” (quando, achando que podem, se põem a escrever, é de dar dó, é um deus-nos-acuda fazê-los crer no que disse La Bruyère: “A glória ou o valor de alguns homens está em escrever bem; o de outros, em não escrever”.

Aos pés é que não deve estar, já que os poderosos, ou aqueles que se candidatam ao poder, reservam-nos, seus próprios pés para, a altura da cabeça dos que, então dobrados, o poder é exercido, demonstrarem, assim, o quanto podem, o quanto podem fazer os outros se dobrarem, a ponto de sua cabeça, talvez silenciosamente cingidas de vergonha, tocar, em submissão contorcionista, os ditos pés do poder em pessoa.

Sendo assim, onde estará?

O poder, creio, longe de mim esse exercício altivo, mais costumeiramente, com o disfarce da “figuração”, da linguagem figurada, dobrado a tantos poderes que já nem sei estabelecer diferença entre os que são de verdade (e se o são, obrigam-nos mesmo a nos dobrar?) e os que não passam de mentira, de uma encenação sem poder de fogo suficiente para dobrar um homem de verdade, a não ser quanto este prefere dar valor à mentira do poderoso, por ser esse o caminho mais curto, se não para se tornar também (não um homem), um poderoso, ao menos angariar algumas benesses, o que não deixa de ser um poder, diante dos que, ou não se dobrando o suficiente ou não se tendo dobrado de forma nenhuma, angariaram a ira poderosa, está, e é nisso que creio, o poder em questão, assentado...no trono, e nada mais a dizer, para não entrar pelo cano, para não adentrar na fisiologia dos homens: poderosos em qualquer nível hierárquico, desprovidos de poder, com poderes além das humanas ambições - até porque sei eu o quanto, dobrando-se de cólica, o mais humilde dos homens também ambiciona o poder, ou o trono em que ele se assenta, para se assentar, submisso, porém, a um poder maior, e que não vem dos céus, que o faz parecer, a sós, um reizinho (de nada), mas, se flagrado em público nessa sua exibição de poder, aparece como o mais ridículo dos homens, sob os apupos dos seus semelhantes, todos eles conhecedores das idas e vindas desse tipo de poder, mas, circunstancialmente, sem cólicas, o que os deixa numa posição, ereta provavelmente, de olhar esse “rei de merda” do alto, tão súdito o outro
encontra-se de sua necsesidade de aliviar-se do peso de estar sempre a mandar: vá à merda!



QUERUBINS
Uma cabeça e duas asas; guardiães do paraíso


“Vistos” assim, que diferença faz? Uma só cabeça, como nós a temos, com a vantagem, nossa, de que podemos perdê-la: e eles? Ou podemos, simplesmente, dizer isso, justificando as asas que nos demos, asas estas que em outros devem, segundo nossa razão humana, ser aparadas, logo que deem mostra de se estarem expandindo além dos limites que lhes são próprios, como se se pudesse conjugar, na mesma imaginação, asas (para que te quero) e contenção (da liberdade).

Olhando ainda esse quadro (no gótico do século XIII, anjos eram belos, jovens, cheios de vida e graça, com grande nobreza e porte: ou seja, tudo com que os homens de hoje sonham), e, mesmo que haja outro ponto-de-fuga, mirando suas asas, é isso que nos diferencia: neles, supondo que não sejam apenas um recurso meramente pictórico, com função tão-somente estética, asas não são arte, pois tem um objetivo, que deve ser o torná-los, alados então, com trânsito livre nesse universo cada vez mais “engarrafado”, e quem sabe assim para que, já sem cara de anjo, os homens se esqueçam de que não têm mais, ainda que eventualmente jovens, a mesma beleza angelical que a quase nenhuma idade lhes dá, de que o tempo lhes tira do “cheio de vida” as gotas que, por serem isso, não parecem fazer falta numa contagem geral, mas que, individualmente, diminuem, progressivamente, a graça de viver; e quanto à nobreza e ao porte, o “engarrafamento” só mantém a pose e as atitudes nobres em quem tem natureza de anjo; e se neles é assim, asas em nós, ou nos fazem anjinhos de procissão, com “penas” de papel crepom, que não pesam nada em comparação com os outros papéis que nos esperam pela vida afora, ou nos dão aquela liberdade de imaginação que é a nossa vingança (tão humana como ela é) contra esses (outros) anjos, sempre jovens, belos, graciosos, imortais: atados ao que são, anjos não podem ser senão o que cada um é, enquanto que nós, enquanto cultivarmos essas asas, enquanto alimentarmos (com as próprias asas) a imaginação, poderemos ser homens infinitamente belos, poderemos ser anjos desgraciosos, poderemos esvarziar-nos de vida até (quase) a última gota e voltarmos a ficar cheios de pose, nobres aqui, homens sem nome acolá.


SERAFINS
Seis asas


Agora sim! Vai ser preciso muita imaginação, talvez mesmo juntar vários homens, dos que já têm, naturalmente, muita, para podermos sustentar, num só anjo, três pares delas.

Se anjos alados, o que parece ser uma expressão demasiado forçada, e não é, são uma “criação” do século V, frustrando quem sempre pensou que tudo houvesse sido criado na hora zero, hora agá da invenção deste mundo, de onde há de ter saído um com seis asas?

Pelo aparente excesso, ficamos tentados (expressão, para alguns de nós, inadequada, quando se fala de anjos, embora para outros apropriada, já que o mestre das tentações, tenha tido ou não suas asinhas cortadas, originalmente era um anjo) a dizer que tanta imaginação deve ser coisa dos nossos tempos. É preciso, porém, considerar que, sustentando esse raciocínio, nós só lhes acrescentamos, até com certo exagero, admito, algumas asas a mais, quem sabe apenas por um “motivo” artístico, já que é bem possível que elas não tenham mais função do que teria um só(?) par, mas que a grande ousadia inventiva, independentemente da quantidade, foi a coragem de pôr asas numa criatura, mesmo que, temerosos de continuar lhes chamando de homens, apesar de as termos moldado a nossa imagem e à semelhança que gostaríamos de cultivar, eternamente, tenhamo-las apelidado de anjos, no geral, e de serafins, no particular.

Particularmente, acredito que mais de um par, sobre meus ombros já carregados de papel (crepom), mais do que um exagero estético, sob o risco de tornar o belo uma caricatura monstruosa, se constituiria um fardo difícil de carregar, ainda que com tantas asas, em tese, fosse me sobrar imaginação, o suficiente para me reinventar como um homem qualquer, sem asas mesmo, como qualquer homem que carrega suas penas, nem sempre às costas, que carrega seus papéis, raramente nas costas, salvo os homens que vivem, sem nobreza, apesar de alguns manterem o porte, justamente, nessa injustiça que inventamos, sem nenhuma imaginação, de carregar papéis, nesse caso, papéis que não lhes pertencem, representações que não são suas, originalmente, falas mudas, frases sujas, silêncios reciclados.

Mas não estou aqui para falar de mim (o que eu posso ter tido de angelical, um dia, a sequência de dias se encarregou de levar, deixando-me, não sei se como uma recompensa ou se como uma pena que solta uma tinta indelével, apenas, na imaginação, com a expressão “cheio de vida”, que hoje me parece, e mais com o passar dos dias, cada vez mais vazia, mesmo que eu estufe o peito, simulando porte, que levante a cabeça, querendo emprestar-me uma nobreza que o próprio levantar dela faz desvanecer). Não estando aqui para isso, também não estou para encher a bola de anjos que têm tantas asas que, mesmo que eu as corte, para que eles caiam na real, não hão de lhes faltar imaginação.


DOMINAÇÕES
VIRTUDES
POTESTADES


Alvas até os pés, cintos de ouro e estrelas verdes;
sustentam na mão direita varinhas de ouro
e na esquerda, um selo com a letra inicial
do nome de Cristo


Pelo amor de Deus! Não há como negar, por mais que se queira condescender com criaturas assim, saídas, provavelmente, à mesma imaginação que nos gerou - o que poderia explicar a inclinação de alguns de nós para o acúmulo de detalhes, a sobreposição de acessórios, tudo isso encobrindo o que deveria permanecer o principal, escondendo, então, o anjo que (se) é em nome de uma visibilidade tão ao nosso gosto.

Alvas, fora nas “tribos” próprias, caíram de moda, embora, a meu ver, ainda cause efeito vê-las desabando, delicadamente, até os pés. Cintos, não! Recriados a cada estação, fora os que são clássicos, e que sempre dão no couro, a qualquer tempo, são sempre um acessório que se deve ter à mão: e todo “anjinho” que conheceu, em idade para isso, suas quedas, sabe o que é ver um homem, espécie de Deus, pelo tamanho que tem, com um cinto na mão, pronto a, sem ser artista, lhe dar novas funções, criando se não uma gritaria geral, uma, em particular. Mas, cintos de ouro é exposição demais, até para quem tem poder, até para quem pode se evadir rapidamente, recorrendo não aos próprios pés, mas às asas, ou ao poder de surgir e de desaparecer, por mais que permanecem na (nossa) imaginação. Até aí, passa. O que dizer, no entanto, de estrelas verdes, como uma ideia, até boa, mas que se expôs antes de se a ter amadurecido o bastante, desperdiçando uma imagem que, completa, poderia encantar, e que, às pressas, deixam a sensação de que algo, nesse figurino, não combina. Varinha à mão, seja qual for ela, faz de um anjo uma fada, comprometendo-lhe a reputação, por mais que se insista em dizer que anjos não têm sexo - mas devem ter lá a sua vergonha! Do selo, experiente em cartões-postais, prefiro passar ao largo; não por eles em si, apesar de não ser um colecionador dessas estampas, mas pelo nome que encerram - agir diferente, seria brincar com fogo, mesmo que esse elemento pertença, na nossa imaginação dada a tons avermelhados, a outro “elemento”.


PRINCIPADOS
ARCANJOS
ANJOS
vestes de soldado, cintos de ouro, dardos na mão


Pelos cintos, passo batido, para não apanhar ainda mais. Pelas vestes, preferindo escapar a esses soldados, cujo poder desconheço, e não quero experimentar em minha própria pele, como cobaia de guerra, passo, perto o bastante para sentir-lhe o perfume, muito embora, imagina-se, o cheiro de soldados, ao menos quando vindos da batalha, não deva ser semelhante ao de um ramalhete oloroso de angélicas, com suas alvas flores mínimas encimando logos talos verdes - e, felizmente, estes aqui não carregam aquelas estrelas. Paro, contudo, diante da impressão que causam os dardos.

Minha imaginação, demasiadamente terrena, cheia de histórias de guerras, não pode perceber a agudeza de espírito de quem pôs nas mãos desses anjos essas setas, mas, como se sentisse, em algum indefinível ponto de mim, a estocada da curiosidade, pergunto-me quem são os alvos para esses dardos. Serão os inimigos dos homens (e reconheceriam eles, num seu semelhante, já caído, mas esperto o suficiente para exercer seu poder mesmo assim, um alvo para seus dardos)? Serão, esses alvos, os próprios homens, espécie de caídos por herança? Serão os alvos? Serão os escuros? Serão os que ficam sempre no meio do caminho, num cinza que nunca se compromete, por covardia de assumir a sua verdadeira cor?

Eis a grande questão que deveria preocupar a humanidade: e não é a contabilidade dos arsenais de dardos em mãos de anjos expatriados e dos que controlam, com mão-de-ferro ou com ela cheia de ouro, as pátrias, a sua e aquelas onde há mãos estendidas mais para saciar a fome do que para serem civilizadas, porque é difícil, além do que se pode esperar dos instintos de um humano primário (nenhum homem assume ser secundário, mesmo que tantos já se creiam superiores), ser apenas gentil, quando, incontido, a barriga, sem a discrição que se toma por adequada, grita suas carências. Não sendo isso, é, até onde me cabe contar, contador que sou dos poderes que não tenho, o que deveria nos preocupar a todos, não tirando da cabeça os dardos, seus alvos.

E isso poderia começar pelo inventário, na nossa cabeça, dos nossos próprios dardos ali entocados, ali estocados, ali, constantemente, afiados para que suas pontas não percam o poder de estocar, mesmo quem, então, se ache devidamente entocado, para fugir a (nossas) setas; a seguir, mesmo que não cheguemos a uma conclusão definitiva a respeito do número exato deles, para quem eles se dirigem: e não são menos letais os (nossos) dardos teleguiados, ou seja, aqueles que lançamos a distância, mentalmente, sem senti-los, palpáveis, na mão, atirando-os em imaginação, pois quando o alvo é bem calculado, o dardo cumpre seu objetivo. E nós, passeando paz, pacíficos-de-passeata, vestidos de alvo, com carinha de anjo!


(TETRAMORFOS)
anjos de seis asas que associam os símbolos dos
quatro evangelistas:
o anjo, a águia, o leão e o boi


Não vou chover no molhado. Nem vou gastar minha saliva. E não porque já tenha dado muita asa para anjos demasiado “apenados”, apenas porque, como não fazem parte da hierarquia oficial, mesmo que possam ter algum poder, prefiro voltar minha mira, fazendo-os meus alvos, para os poderosos já estabelecidos, com nome na praça, com reputação que ultrapassa os limites desta terra e repercute até nos céus, sobretudo neles, que é o espaço em que transitam costumeiramente, embora haja os que montam guarda por aqui, sempre no nosso pé, embora ingênuas pinturas os ponham, velando-nos, atrás da cama, que também é o lugar preferido dos alcoviteiros, alcovas que são, hoje, quase tão “imaginárias” como são anjos com tantas especificidades: um para cada dia, um para cada cor, um para cada intenção, quase um para cada imaginação - sorte (nossa) é que nem todos os homens, e nisso eu dou uma ajuda inestimável, têm imaginação suficiente para inventar anjos para todas as (suas) necessidades, até porque, se a tivessem, voltaríamos a ponto de partido, ou seja, necessidade que todos temos (de anjos), ao...TRONO.