sexta-feira, abril 01, 2011

FÂMULOS









destruição da família!... Quantas vezes já se repetiu isso, tentando-se atribuir, ora à destruição (da família), ora à própria família (sem incluir a própria nessa destruição toda), destruída já ou em vias disso, a falência do espírito de sociedade, esta erguendo-se, segundo conceitos que mais parecem dogmas, sobre aquelas, sobre as famílias, incluindo a nossa, a que, entre as tantas que se vão destruindo, surge, se não como a única, ainda como inteira, sem que os olhos dos membros dessa família se voltem para as fissuras que, a outros olhares, já são evidentes sinais de um perigo iminente, preferindo a família se encastelar numa autoatribuída eminência, como se se sentir assim fosse capaz de, como massa apropriada, tapar os buracos, curar as rachaduras, remodelar o antigo sem, contudo, tirar-lhe aquele aspecto de tradição, que é o que lhe empresta o ar de...família.

Mas, afinal, que família é essa?

Se nos aventurarmos a dizer que é uma família clássica, com membros com funções definidas, arriscamos-nos a surgir anacrônicos; a até mais: como reacionários por, supostamente, não nos mostrarmos atentos para as diferenças, para a renovação dos papéis. Então, a família já é outra, já é uma que prescinde do estar junto, da obediência a uma autoridade sustentada, aqui, no provimento, única fonte, por vezes, de provisão, quando há tal fonte, e ali, no poder simbólico que ultrapassa o que sabemos, conscientemente, varando a inconsciência – e esta é um fundo de profundidade desconhecida, em que uma vara, aí entrando, não será capaz, por mais comprida, de nos dar noção, não exata, apenas aproximada, de onde estamos nos metendo ao cutucar o inconsciente com vara, por mais comprida, sempre curta.

Agora, vamos fantasiar um pouco! Deixemos que passem, diante de nossos olhos, retomando velhas experiências pessoais, ou fazendo nossas experiências de terceiros, reinventando-as, toda uma sequência: um jantar – pode ser um almoço –, família toda reunida, como se sua construção original, mesmo que isso contraria a natureza subtrativa do tempo, mantivesse-se intacta, tomando-se o cuidado de suprir uma ausência, para não deixar lugar vazio, com uma presença especialmente convidada, seduzida esta pelos apelos de que “já faz parte da família”. Cabeceira ocupada, cabeças desocupadas, ocupadas(?) apenas com distrações recíprocas. Pai com autoridade generosa. Mãe com modesta autonomia. Filhos em obediência transgressora (daria no mesmo se dissesse “em transgressão obediente”). Netos, se (já) houver, como reminiscência dos (próprios) filhos, por menos que os filhos, ora netos, se pareçam com seus pais, filhos do pai dessa família.

Na realidade, família é uma comunhão. Em verdade, hoje, o que chamamos de famílias, mesmo que a ela acrescentemos, antecipando-nos a possíveis contestações, “nova”, sem que saibamos, precisamente, dizer o que uma “nova família” (ou uma família nova) significa, o que tem de diferente, fora o passar do tempo, de famílias de outrora, não passa de um conjunto, algo frouxo, sem nós confiáveis, lassos nós, nós que jamais formam verdadeiramente laços, de individualidade que se reúnem, quando se reúnem, na impossibilidade de cada qual ter o seu canto, sem o aborrecimento da convivência.

Não que A Família anule os indivíduos que a formam, massacrando suas peculiaridades em nome de uma improvável convivência pacífica, porque, enfim, a paz (de uma família, de um individuo) não depende, exclusivamente, de uma livre e idiossincrática expressão de si mesmo. É que, agora, família é um nome genérico demais para um ausência quase total de similaridades: família são aqueles que vivem sob o mesmo teto; ou que guardam, ente si, a cor comum do sangue; ou que contam as mesmas histórias, com pequenas variações – o que pode não ser outra coisa se não o gosto pelos mesmos livros de ficção.

A base da sociedade, por mais que isso não seja caro a um discurso moralista, apologético, religioso, é, sobretudo, a aceitação do “contrato social”: esse ceder aqui, cobrar acolá, mantendo-se num equilíbrio precário, mas suficiente para se garantir um mínimo de convivência – se pacífica, isso já é outra história, sendo talvez, a tal paz, a maior das ficções. E um contrato assim, de adesão, do tipo aceitar-ou-largar, às vezes, é duro de se tolerar, particularmente quando se julga ceder demasiado em relação a uma contrapartida, ainda sob o próprio julgamento, aquém.