sábado, dezembro 01, 2012

AS CURVAS DAS ESTRELAS DO UNIVERSO PARALELO










ra, direis, ouvir (as) estrelas! por que, afinal, dar ouvidos a elas: o que têm elas tanto assim para dizer, que estão sempre a falar? E eu vos direi, é certo, perdi o "censo": não sei quantas estrelas há nesse universo, mas, desconfio, quase já beirando a certeza, de que são em maior número do que aquelas que, levantando os olhos, vemos nesse céu mais próximo de nós, espécie de antessala de um outro a que tanto aspiramos, desde que não precisemos, em troca, desde já, abrir mão dos inferninhos tão mais próximos.

Estrelas não são “coisa” de agora, embora, ora, as tenhamos em quantidade tal, que fica até difícil contar, correndo-se o risco de, tendo-se de reiniciar o cálculo, a cada vez que se perde a conta, na ponta dos dedos, apontando, com alguma indiscrição (e estrelas gostam disso!) para elas, perder-se também o senso – que se não é a (nossa) “razão” de viver, é o que, às vezes, empresta à vida seu prazer, dando-nos consciência dele, porque, se não a temos, como sabermos se o que temos tão à mão é mesmo prazer? Porém, que não se carregue na mão, com muita razão, que razão a mancheia é um passo para se perder o senso, a ponto de nos deixar, como loucos, contando estrelas, sem parar, sempre, depois de algumas já calculadas, voltando à estaca zero, tal qual um recitador que passa seus dias, inteiros, a tentar declamar um poema por completo, mas que, após alguns versos, retoma o inicial, voltando ao “Ora, direis, ouvir estrelas!”, talvez, sem que se dê conta disso (o que mostra que ainda tem lá alguma razão de reserva), como precaução para, não chegando jamais ao fim, não dar por findo o jogo, reiniciando a partida: ilusão de muitos de nós, mesmo os que, entre nós, não costumam contar estrelas, não costumam dar ouvidos ao que contam estrelas de revista, há muito deixaram de contar nos dedos (seja o que for), já fazendo bastante tempo que sequer levanta os olhos dos seus cálculos mais pessoais, dizendo, para si mesmo, que esse negócio de céu não é para si, que tem negócios outros, bem mais terrenos, com que se preocupar.

Querendo ou não, temos estrelas no nosso imaginário. Já não volto tanto no tempo, chegando àquele em que, românticos, tinha-se uma estrela própria no céu, escolhida, em conjunto, com alguém que, ora, nos fazia perder o senso, errar nas contas mais primárias, nesse amor tão incipiente. Também entro nessa máquina (de fazer doidos) do tempo, desembarcando em filmes de outra era, quando estrelas, por vezes, eram mais importantes que a própria história, esta, coadjuvante para aquela, degraus pelos quais a estrela descia, gloriosa, reluzente, como se baixasse, divindade de fantasia, de um céu que se sabia efêmero, mas que proporcionava prazer – e há céu que não seja assim?

“Amai para entendê-las!”, disse o poeta, provavelmente, com olhos no céu. E não poderíamos dizer o mesmo de outras estrelas, não das de hoje, que nascem com hora marcada para desaparecerem, tempo curto, porque há muitas outras, à espera, na fila, mas, quem sabe, das de “ontem”, tidas, então, como eternas: e destas podemos dizer que se sua eternidade material se provou uma fraude, a outra, talvez a (mais) verdadeira, a que faz com que continuem vivendo na fantasia de cada um de nós, ainda lhes garante uma sobrevida. E se isso for só mais uma ilusão, será só uma ilusão a mais.



quinta-feira, novembro 01, 2012

A UTOPIA QUE ENTROU PARA O MAPA







á uma terra de sonhos, contra a palavra, carregada de cientificidade, dos cartógrafos. E, para pesadelos dos mais realistas, dos que só creem em terras que estejam no mapa (e um lugar que não está no mapa é mais contundente prova do sonho), essa terra é bastante real.

Dito isso, desse modo, porém, que ela, essa terra da qual se fala, aqui, sem que se tenha desenhado o caminho das pedras, mesmo que um rabisco apressado, desde que uma pista confiável de como se chegar lá (e, principalmente, em se chegando a essa terra de sonhos, como se sair de lá, para que a viagem não se torne um pesadelo sem fim), fica parecendo que a terra dos sonhos ou não passa de um sonho, sem que isso seja uma maneira de se ratificar o que ela já é, confirmando-se, assim, sua (real) existência, antes, sendo mesmo a confirmação de que, sendo sonho, a terra dos sonhos não existe, ou então é uma invenção – e estas só não têm existência real na cabeça dos que não sabem o prazer de inventar, sequer o de se (re)inventar – de algum cartógrafo invejoso, despeitado, em relação a seus colegas mais realistas, os que só desenham mapas de terra possíveis, sem que haja, aí, um grão de sonho, por jamais ter descoberto uma terra de verdade, chamando-se assim a uma descoberta que, mesmo sendo um pesadelo, não passa perto da fantasia, não fazendo fronteira com o sonho.

Uma terra assim pode estar em qualquer lugar; podendo mesmo existir em um lugar que já existe, realmente, sem que, com isso, o sonho dessa terra se sobreponha à existência real do lugar. Porque, só os realistas ao limite, ou os sonhadores além dos limites, todos uns loucos, não acreditam nisso: sonho pode haver sem que se esteja, estritamente, com os pés fora do chão, tanto quanto a realidade não requer que se os tenha enterrado na terra.

Qualquer terra em que se sonhe é (uma) terra dos sonhos, ainda que, ao se despertar (desse sonho), olhando-se em torno, a realidade seja outra, bem distante do sonho. Aliás, a única possibilidade de que sonhemos, de que sejamos terra fértil para os sonhos, é que existamos, realmente.



segunda-feira, outubro 01, 2012

INFANTILÓIDE DEBILITADO OU ADULTO ADULTERADO?










inha infantilidade, hoje – e não dizer, simplesmente, infantilismo, com receio de que, com esse sufixo-patológico, pensem que sou um “doentinho”, já mostra o quão sou, se não o doente diminutivo que se pode pensar, certamente, um irrecuperável infantil –, é a crônica atrasada de dias que, passados para trás, caído eu no engodo do tempo à frente, permitiam, com benevolência algo impaciente, que não se fosse responsável, sendo que isso era o ideal de todos, o que de melhor se desejava aos infantes, receando mesmo, em alguns casos, que, insistente em suas infantilidades, mais adiante, não se tendo desgarrado convenientemente desses dias, tornasse-se um irresponsável, ou seja, um inconveniente.

O que os responsáveis de hoje não notam, ou para isso viram a cara, não apenas para não enxergarem, mas, e talvez o façam com indisfarçável prazer, para fingirem a pouca importância que gostariam de dar àquilo, é que só é possível fazer a crônica de quaisquer dias, especialmente os infantis, quando, num equilíbrio precário, estreitíssima corda, quase um fio, em que se tem de se manter, tendo-se, de um lado, a infância sobre a qual se atiram os olhos de agora, enquanto que, do outro, esses (mesmos?) olhos, olhando para trás.

Quem, infantil, aventura-se a, já nessa hora, fazer a crônica desses dias, faz, tão-somente, um documento banal, um a mais, entre tantos que são produzidos – e não apenas por mãos infantis. Quem, sem esses olhos de outrora, hoje, crê ser possível, com olhos de um agora que já não olha para trás há muito, acredita que basta tal afastamento no tempo para que, convenientemente responsável, segundo as conveniências sabe-se lá de quem, possa fazer uma crônica adulta, mas, devidamente, temperada com calculados olhos da infância, faz, no máximo – e, admitamos, não é pouco – uma obra de ficção que, por sorte, até pode guardar alguma sincera relação com aquele tempo.

Não prego – na infância, embora prego e martelo exerçam certo fascínio, não nos deixa, com a liberdade com que gostaríamos de fazer isso, tê-los à mão, ao nosso critério (porque o temos, e só os responsáveis, esquecidos de seus outros dias, dizem que não) – que, cedendo às conveniências, com responsabilidade, até mesmo sobre outras infâncias, permaneçamos com um olho infantil e outro pregado no presente, já que, um já ocupado com o passado, manter o único que sobre, quando se tem os dois, no futuro, parece coisa de criança, de não de responsáveis: agir de tal modo seria como querer dormir com um olho aberto e outro fechado, ou ainda os ter assim, durante a vigília – e sabe que isso é coisa mesmo de criança, e ponto.

Se não prego nada, por que, hão de querer saber, já que isso lhes é conveniente, fico, aqui, martelando essa história de contar, em crônica, uma infância enrolada em linhas cruzadas de papagaios (e periquitos) tácitos, aparentemente, deixando-se manietar por mais que, livre e dominadoras, dão-lhes ora impulso, ora lhes nega mais linha: e é aparência, porque há o vento, que não atende a conveniências, que parece irresponsável quando levanta cabelos já assentados na vida, num desalinho quase infantil, e que é o verdadeiro condutor desses dias. E, talvez, ainda dos de agora, embora, responsáveis, prestemos mais atenção aos documentos, e ainda, quando a conveniência exige, um lenço – e já não cantarolamos nada.




sábado, setembro 01, 2012

CLAQUE ESFOMEADA PARA ELITES INSATISFEITAS








piada é antiga, mas continua um prato cheio, especialmente, para os que, como eu (e não vejo a menor graça nisso), não são versados em piadas, não são versáteis com elas, apegando-se a uma ou outra, que conta e reconta, infinitamente, não levando em conta as vezes em que já a(s) contou, a ponto de chegar a contá-las, repetidamente, à mesma pessoa, até percebendo a repetição, porém, demonstrando, ainda que involuntariamente, pouca consideração para com esse ouvinte, vai adiante, como se estivesse para partilhar uma alegria fenomenal, valendo-se, no entanto, como se, no seu íntimo (que é o meu, aqui), soubesse do seu pouco talento histriônico, de seu próprio riso para completar uma gargalhada que, quando vem – e isso não é certo –, chega-lhe aos pedaços, sinal evidente de uma piada mal-contada, arriscando-se, quem assim se deixa levar por uma necessidade de parecer engraçado, a tornar-se a própria piada: e o que é pior, esta sim, digna de incontroláveis gargalhadas.

E, aqui, a piada é que o melhor prato é um prato cheio. Coisa que, dirão alguns, sem mostrar nenhum humor, não tem graça, beirando, para eles, apesar de carecer (o que chega a ser um ironia, mas não uma piada, em se tratando de tão cheio prato) de sonoros palavrões, o mau-gosto personificado, impressão na qual são, de pronto, acompanhados por outros, os que, também sem humor (gente mais azeda!), veem nessa tentativa de fazer piada um atentado ao seu cultivado gosto, um refinamento com forçado acento francês, ainda que não percebem – ou, percebendo, desconsiderem esse detalhe – que o prato lhes foi servido pela direita, preferindo deliciar-se, com sinceridade incerta, gourmets que se creem, com essas pequenas porções, exemplo de calculado minimalismo com aspirações a obra de arte, antevendo, aí, o gozo supremo que lhes espera, já imaginando – será que suportarão tamanho gozo? – o dia em que, de tão comedida a cozinha, o prato há de lhes ser servido completamente...vazio: ah! delícia!

E mesmo assim, com sorriso nos lábios (de tão pouco que há para comer, é até possível se comer e falar, ao mesmo tempo, sem maiores atentados), não se acham, quando sabem que se tornaram personagem de uma gozação pelas costas, nenhuma piada, maldizendo o dia em que nasceram: não os que, mal-educados, fazem piada de coisa tão séria, mas rogando praga sobre o dia em que eles próprios nasceram, para viverem num mundo que não lhes merece, incapaz de perceber as elegantes sutilezas da civilização, consumindo, essa ralé, com voracidade que não lhes impede que falar com a boca cheia, os pratos cheios da vida, não se dobrando, do alto de sua elegância de manual de boas maneiras, à evidência de que não há arte maior do que se sentir satisfeito.

Mundo, deveras, injusto! Enquanto uns, podendo pagar caro por quase nada, para agradar suas papilas (que podem, na verdade, ser incapazes de distinguir uma verdade a quilo de uma mentira em gramas, valorizando mais esta, só porque lhes custa mais “verdinhas” – que nem estão assim, hoje em dia, tão valorizadas), deploram o prato cheio, os que dariam tudo por um, mesmo que raso, desde que aparentemente cheio (porque sabemos, gourmets inclusive, o quanto se come, e bem, com os olhos), têm de se contentar com módicas porções, forçados a isso, sem enxergarem nem graça nem elegância em parcimônia compulsória.

Mas, refinados, não se sintam culpados, se flagrados com um prato desses na mão, um cheio, já transbordando pelas bordas, não havendo tempo hábil para o esconder (tão cheio como está). Há mesmo uma saída filosófica, misturada com literatura, o que já traz a arte para mais perto: Nietzsche dizia que a sensação de uma consciência tranquila era semelhante à satisfação de se estar com o estômago cheio.

Os finos (melhor conhecedores tanto de filosofia quanto de literatura – e ambas essas “cozinhas”, sou adepto do prato cheio) podem torcer o nariz, desviar os olhos, não engolir isso, e ainda ter ânsia de vomito, diante de argumento assim para justificar uma comilança, mas, na hora da fome, somos todos bichos, queremos mesmo é sobreviver. E se o conseguimos, com estômago já cheio, não há espaço, consciência sossegada, para sentimento de culpa – a não ser o de não ter comido mais.








quarta-feira, agosto 01, 2012

DES-CLASSIFICADOS








h! não sejamos ingênuos: há, sim, vendedores de ilusões. Não nos iludamos: há, sim, ingênuos neste mundo, mas não são, estes, o alvo preferencial dos vendedores de ilusões, tomando-se tais trabalhadores em vendas como uns charlatães profissionais, daqueles que se valem da ingenuidade alheia para alcançar seus objetivos que, para os que se julgam mais espertos, são, claramente, escusos, não conseguindo compreender como há gente que ainda se deixa levar por tais espertalhões, referindo-se, claro, aos outros, aos que são vendedores, e não a si próprios, espertos como são, porque, afinal, não vendem coisa alguma, não percebendo que, a seu modo, involuntariamente, tentam vender a imagem de que são bastante inteligentes, a ponto de se darem conta do que, mesmo se passando sob o nariz dos potenciais compradores, passa-lhes despercebidamente.

De um ponto de vista pragmático, só há vendedores, do que quer que seja, inclusive de ilusões, se há mercado, portanto, compradores, mesmo que saibamos que este mundo, com sua diversidade, comporta também vendedores que mais se parecem com compradores de ilusões, considerando a mercadoria que vendem, verdadeiros sonhos, ainda que os mais espertos vejam, aí, uma contradição: ou é sonho ou é verdade, não cabendo em sua cabeça que ambos, verdade e sonho, possam conviver, ora com harmonia, ora em conflito.

Mas, a lógica do mercado não é nenhuma verdade revelada que, dependendo, exclusivamente, da fé – da boa – dos consumidores (do que quer que seja), baste-se a si mesma, legitimando, assim, o que se vende, jogando sobre as costas, nem sempre muito largas, dos compradores a responsabilidade por esse seu ato de vontade. Então, não é suficiente que haja quem queira – ou seja levado a isso – comprar para justificar a existência dos vendedores, havendo a necessidade, dentro dos padrões civilizados que parecem partir do princípio de que não o somos, primordialmente, de acordos suplementares que garantam certos direitos à parte mais fraca, ou seja, os consumidores, como se vendedores, uma ou outra hora, não o fossem também, e só pudessem ser vendedores, como um vilão que está impedido de ter bons sentimentos, ou um herói romântico que é incapaz de alimentar (os) maus – ainda que dar de comer aos maus aumente ainda mais seu caráter, tanto de herói, quanto de romântico.

Conhecendo, intimamente, as técnicas de venda, e ainda mais, especificamente, a mercadoria que vendem, os vendedores de ilusões são tidos como muito espertos, chegando mesmo a se convencerem de que o são, verdadeiramente, e, assim, estariam inumes a tais técnicas, percebendo, no ato (da compra e venda), o quanto, querendo comprar, estariam sendo ingênuos: são, sim, espertos, ao acreditarem que as ilusões são um produto como outro qualquer, ressalvadas certas peculiaridades que lhes são próprias, como, de resto, toda mercadorias possui suas especificidades, mas também não passam de uns ingênuos, até, eventualmente, mais do que seus compradores mais habituais (aqueles que sempre compra (suas) ilusões, e, apesar da repetição desse ato, jamais percebem se há ou não algum engodo nesse comércio), quando creem que enganam seus fregueses, dando-lhes (na verdade, vendendo-lhes) gato por lebre, certos de que eles, recebendo gato, acreditam que põem a mão numa lebre, não atentando para o fato de que há consumidores para gatos, para lebres e – eis o pulo-do-gato! – consumidores que precisam, como de um bem primário, comprar gato por lebre, ludibriando, assim, às vezes, à própria revelia, inconscientemente, portanto, o tal vendedor que, não tendo dúvida de que faz um ótimo negócio, ao vender isso por aquilo, até baixa o preço, para se livrar da mercadoria, quando é justamente isso de que o comprador precisa, ou seja, (d)isso por aquilo.














domingo, julho 01, 2012

ÓBICE A UM PÉ-DE-GUERRA








essa corrida de obstáculos, obstáculos mesmo são os trechos em que não há esse tais empecilhos, em que a corrida, sendo de obstáculos como é, parece fluir, sem tropeços, com uma mansidão que pode até ser o desejo dos caminhantes, mas que é a derrota de quem se dispõe a correr assim, sendo sua vitória o ultrapassar os obstáculos, numa correria só, e não os havendo, a suavidade lhes é como uma afronta, pois, que valor há em chegar, desse modo, em primeiro lugar, mesmo que tenha sido o único a completar a corrida de não-obstáculos, já que os outros, acostumados aos obstáculos, não os encontrando pelo caminho, como é de praxe em corridas tais, sem saberem como agir, pois seu treinamento não contemplou trajetória sem empecilhos, foram ficando para trás, a ponto de, não enxergando mais nenhuma possibilidade de alcançarem a vitória, desistiram pelo caminho, ficando à margem, cansados dessa estrada que não lhes impõe qualquer obstáculo?

Pensam que, assim, o que, sabe-se lá como, não desistiu, tendo chegado ao fim da corrida, sozinho, mesmo que tenha completado o percurso num tempo infinitamente maior do que aquele que gastaria para o vencer, caso a corrida de obstáculos fosse mesmo cheia desses empecilhos de lei, sente-se vencedor, bradando, cheio de orgulho, sua vitória? Nada! Surpreendido por ter chegado, impulsionado por uma força sobre-humana (é mais fácil para os homens suportarem os obstáculos, esses que eles usam para valorizar suas pequenas vitórias, do que, do que a ausência deles, não havendo, portando, desculpa para que não sejam uns vencedores), esse sobrevivente de uma corrida sem obstáculos vive envergonhado, tendo mesmo retirado de sua lista de vitórias (todas em corridas de obstáculos) esta de agora, por ela carecer daquilo que mais lhe dá orgulho: não, simplesmente, a vitória, mas vencer os obstáculos, mesmo que isso signifique apenas um ou outro buraco no meio do caminho.

Curiosamente, os tidos, normalmente, como derrotados, os que ficaram pelo caminho, e mais ainda os que tomaram a decisão de desistir, firmando posição contra a falta de empecilhos nessa prova, são os que desfilam, agora, seu orgulho, chegando mesmo (coisas da competição entre os homens!) a esfregar na cara do vitorioso-em-tese, derrotado-na-prática, sua derrota, fazendo isso como se ela fosse uma real vitória, sentindo o acerto disso ao perceberem a vergonha daquele que sente sua vitória como um real fracasso.

É da natureza humana reclamar. Ouvem-se, por aí, com justificativas de cidadania, reclamações contra os buracos no meio do (nosso) caminho, tornando-os, pequenos que eventualmente sejam, verdadeiros obstáculos, um empecilho para que, tendo de percorrer essa estrada, como uma prova diária, sagrem-se vencedores, imputando (com um “filho-da-puta” dirigido a uma autoridade genérica ou a um subalterno específico) a tais buracos – e há os verdadeiramente enormes – toda essa sua derrota. Os que, por fazerem, cumprindo tal provação, esse caminho, diariamente, acabaram por saber contornar os obstáculos, não havendo, assim, empecilho para que cheguem no ponto em que devem chegar, se chegam, enfim, ao ponto, e isso lhes granjeia uma vitória, diante dos outros, retardatário com a desculpa dos buracos ou ausentes com a desculpa do tamanho dos mesmos, envergonham-se, a ponto de rejeitarem a vitória, unindo-se aos outros em suas reclamações, ainda que, para isso, no outro dia, mesmo que os buracos tenham aumentado, da noite para o dia, contornando o que aprendeu a contornar, atrase (ou desista, no meio do caminho), só para, em coro, reclamar, sentindo-se, afinal, um vencedor.

Acabei de pôr, aqui, obstáculos que, para mim, postos no meu caminho, ser-me-iam intransponíveis. Se alguém conseguiu vencer tantos empecilhos, pode-se sentir um vencedor; um vencedor de verdade, sem ter do que se envergonhar, mesmo que não se possa negar um prêmio à coragem dos que, abatidos, no meio do caminho, por tantos buracos retóricos, estejam ainda pela metade (o que é uma contradição, caso tenha chegado até aqui) ou tenham, de vez, desistido: se não há nisso a mesma perseverança daquele vencedor, há, pelo menos, inquestionável inteligência.





sexta-feira, junho 01, 2012

WARREN & SHIRLEY COIFEURS






ara evitar perda de tempo (que, como cabelos, é definitiva, a não ser que se tomem providências...a tempo – porém, se este já estiver perdido, não haverá mais remédio, isso que se diz que (já) há para a perda de cabelos), aviso, desde já, que de pouco ou de nada adianta especular, mandar que eu me olhe no espelho (até com os olhos fechados, eu sei bem o que veria). Não adianta, com uma lupa potente, no auge do seu vigor, lente aumentativa quase ao exagero, ali ir pesquisar, porque eu próprio digo, sem maneiras de fingido desdém, ou de um sincero orgulho, talvez ocultando, sob o disfarce de um não-é-comigo, toda a devastação capilar que faz daquela região, entregue às moscas com brevê, a própria imagem de uma clareira, depois de apagada o fogo juvenil das queimadas ateadas por desejos que usam os mais diversos combustíveis, nessa prática secular: tudo o que tenho nessa minha cabeça não passa de resíduos de Shampoo.

E, agora, já tendo revelado o nome do filme, antes que um golpe de surpresa me faça ver estrelas, sou obrigado a revelar também que, embora já ali não tenha lugar cativo, ainda penso em Warren Beaty. Mas, ao lembrá-lo, vem-me (à cabeça, claro!) que isso é história por demais antiga, mesmo que colorida, algo cor-de-rosa, rosa falso(a) talvez, tão velha, como uma das vidas passadas – não uma das minhas, que não leio esses livros exaustivos, mas uma das vidas pretéritas de Shirley MacLane, um dia, irmã linda de um (ainda) eterno bonitão – aquele “Shampoo” devia ter algum mistério!

Não que o cinema me tenha feito uma lavagem cerebral, com divertidas idas a um salão, com perigosas entradas, pelo gosto de passar por aquela porta de vaivém, num saloon, ou com saídas, à francesa, de um elegante salão, tropeçando, porém, no tapete, quando já estava praticamente saindo da fila, atraindo, assim, a atenção, que tanto quis despistar. Ao contrário até! O que esses filmes fizeram foi encher minha cabeça, ocupando o espaço deixado vago, progressivamente, pelos cabelos que me custaram, um dia, xampus caros e condicionadores baratos, tão baratos, que assistir à sessão inteira era um exercício de sobrevivência, pelo calor, numa selva tropical na estação mais quente do ano.

Ah! é tudo de que preciso. Mas, nada tão ao ar livre, com essa dispersão da luz na tela e sua concentração ao lado, onde deveria estar escuro: um ar que fique, hoje, preso, esperando a hora de, num alívio supremo, expiar(-se), desde que não seja por uma ação atabalhoada de carros em disparada ou de astros descabelados dependurados, pendurados por um fio (de cabelo?) num precipício de boca aberta.

Não! preciso de um ar engolido em seco, ao ver, diante de mim, a já não sei mais a quantos quadros por segundo, pois o tempo corre, uma cena de silenciosa eloquência, longa sequência sem cortes, sem feridas expostas (permitidas as in-postas), com um vento falso que entra, não se sabe bem por onde, tornando voláteis as echarpes já leves, e mais pesado o clima, sem, contudo, desfazer os penteados: ilusão de que cabelos são para sempre.

Hoje, no entanto, o realismo de mentira não se contenta com um imenso ventilador oculto e quer vendavais mais do que de verdade, a ponto de varrerem os penteados do mapa. Mas, apesar da intempestiva entrada em cena desse ar exagerado, espécie de ator à antiga, ainda fazendo aladas as echarpes, como se estas, independentemente do tempo (e do vento) que faça, não voassem sempre com espontânea docilidade, num gesto clássico, ainda passo a mão pela cabeça, não na esperança de reencontrar ali fios caídos, tempos perdidos, mas por um sossego que, em meio ao tumulto copiado aos mais banais filmes de ação, as lembranças me dão, mesmo que sejam memórias alheias, coisa de cinema, e não minhas próprias recordações.




terça-feira, maio 01, 2012

O IMPÉRIO DO SONHO, A VALSA, O SONHO DE VALSA E A VALSA DO IMPERADOR







uero te tirar para uma dança, mesmo contra toda a prudência que recomenda que eu permaneça quietinho, no meu canto, cantarolando, baixinho, e só para mim mesmo, a canção que gostaria de contigo dançar, evitando, assim, o vexame de expor, publicamente, o endurecimento (natural, aliás, considerando-se o “tempo”) das minhas juntas, junto com o, contraditoriamente, excesso de flexibilidade que me faz cair de joelhos, sem traumas aparentes, diante do deus Desejo, sem que eu tenha manifestado qualquer vontade consciente disso, implorando, nesse caso, ser aceito como teu par.

Foi só um instante, chego a pensar num simples quase-nada, mas, sacudido num ponto indiscernível do meu espírito de bombom recheado, cedo à fantasia, talvez um tanto tardiamente, e decido-me, enfim, por uma valsa. Logo, porém, acerta-me, em cheio, como se houvesse calculado esse alvo, a face, como se o braço mal colocado de um par que valsa ao lado, a noção, clara, do espaço: já não há lugar, neste mundo, já se valsar, sequer sozinho, por menos que isso possa ter alguma graça.

Há, embora tenha de reconhecer que meu Sonho de Valsa requer um vasto salão iluminado, com velas que se multiplicam ao se deixarem capturar por espelhos, cuidadosamente posicionados, como se armadilhas eficazes para chamas mais hesitantes. Além disso, há de ser uma dança à antiga, com a dama (porque é tão à antiga, que requer dama e cavalheiro) varrendo, num giro, todos os cantos do mundo com seu longo vestido rodado – apesar de rodada essa roupa, novinha em folha, quase estalando de tanta novidade no salão –, e com par, um verdadeiro cavalheiro (à moda antiga, claro!) envergando, sem sentir nenhuma vergonha por conta disso, bem pelo contrário, mesmo que ao custo de forçar, hoje, uma postura ereta demais para nossa modernidade pouco ergométrica, reforçado tal esforço por sua idade já inclinada ao descanso fácil, um fato de gala, escuro, com cauda viril (só a experiência, que vem com o tempo, com o preço que este cobra, é capaz de emprestar virilidade a uma cauda), com botoeira preenchida com tanta naturalidade, que o botão ali posto ainda carrega consigo, recendendo a frescor matutino, um orvalho pendente, vindo de uma madrugada há pouco plantada no solo fértil de um relógio de bolso, dourado, devidamente acorrentado (os trajes de gala não dão muita liberdade de escolha), numa prisão, contudo, que se dá por cadeia de ouro (o que não a faz menos prisão, embora a torne relevante cadeia), permitindo que se veja as horas, no instante em que isso se desejar. Isso tudo sem se esquecer, porque é de praxe, nesse figurino recém-cortado por estas minhas inábeis mãos para trabalhos com tesoura, dos sapatos envernizados, a ponto de deixarem, mais elevados do que os pés que os calçam, encimados, enciumados os espelhos, com o brilho reflexo no couro bem polido.

Como se vê, é mesmo um sonho essa valsa que, só de a olhar, mesmo que assim, na fantasia só, derrete um coração – até os mais duros, imagina então o que faz com um coração de chocolate, envolto, num traje de gosto duvidoso, em papel dourado ou prateado, da cabeça aos pés; um coração que, em dias mais quentes, derretido, faz uma lambança, mas que dura, se conservado em ambiente “fresco” (talvez seja por isso que ele vive intimamente envolvido em roupa prateada ou dourada, dos pés à cabeça).

Coração à mostra, aliás, é um perigo constante, é alvo fácil até para flechas sem destino certo e que, por um direcionamento atávico a essa sua natureza de seta a cruzar os ares, dão-se por satisfeitas, se se deparam com um peito assim, como se, interpondo-se entre elas e o vazio, viesse justamente em sua direção, quando essa viagem é função das setas e não dos peitos, ainda que o coração esteja batendo só porque o tronco que então o porta, suando como se orvalhando, a qualquer hora do dia, corre ao encontro de uma flecha que lhe foi pré-determinada. Melhor, para garantir alguma segurança a esse bombom acomodado a sua caixa (torácica), é protegê-lo: para isso, uma capa.

A que está mais à mão não passa de papel celofane, com aquele indefectível forro prateado (às vezes, dourado, o que não melhora muito), roupa nada discreta nesse vermelho chamativo (de dar água na boca, por mais que queiramos esconder certos desejos), sendo ainda mais indiscreto no som que faz ao desenrolar sua cantilena, principalmente, quando, no cinema, o filme requer o máximo de silêncio. Vendo-o assim, sem abandonar a fantasia da dança, sem abrir mão do Sonho de Valsa, deixo o coração se (re)virar no peito, cuidar de seu próprio destino (e que é cair, mais cedo ou mais tarde, numa língua, em qualquer idioma), e dedico estas linhas somente à capinha desse chocolate, ao papel que torna doce, ainda que, por vezes, a outros, irritante, o amassá-lo.

Com ele, seduzido por sua cor ilusória, faço novos óculos, só para enxergar, em cor-de-rosa, os muitos tons de um mesmo Jobim. Mas, ilusão de ótica, o mundo que eu queria ver em paz me surge sangrento de um vermelho sutil, como se quisesse emprestar belezas às guerras. Dos olhos, nos quais ainda resistem velhas sequências de valsas longas, não importando os erros de continuidade que atam, num mesmo fio, o Danúbio Azul às valsas (mais) brasileiras, chego, enfim, à boca – e não há bombom à vista, ainda que a língua vasculhe, cuidadosamente, e com a intimidade que lhe é própria, a cúpula do (seu próprio) céu.

Um pente, que, aqui, aparece, ao acaso, eu o embalo no papel do sonho e, improvisada gaita, arrisco-me numa valsa, soprando-lhe esquecidos acordes de uma época que não sei como entrou na minha cabeça, que é sempre um samba-do-crioulo-doido. O som, agudo demais, quebra todos os lustres de cristal desse salão cinematográfico que, assim, apagados, dão chances, afinal, para que as velas possam brilhar, cumprindo seu papel. Com temor de me ferir nesses fragmentos de valsa, levo a mão ao peito, própria a mão, peito todo próprio, para me certificar de que, no seu (próprio) lado, no esquerdo, o bolso ainda guarda um bombom quase derretido.

Ainda, a essa altura, quero te tirar para dançar. Porém, considero ser mais prudente procurar um sonho menos difícil, porque só assim, e talvez, eu consiga te convencer a comigo – coisa de sonho! – bailar.











domingo, abril 01, 2012

VOU PEDIR O CAFÉ PRA NÓS DOIS










essa nossa língua que não se contenta em ficar parada, nem que seja por um instante, talvez assim para disfarçar a fome, embora o artifício possa, como um tiro que nem de longe acerta o alvo, sequer passando raspando por ele (raspas, como sobras, para quem tem fome, e, portanto, não demonstra, o que não quer dizer que não o tenha, pejo contra farelos, já é um alívio), não só não obter o resultado desejado, mas aumentar o desconforto do estômago vazio, chegando a efeitos contrários a suas expectativas, Bonequinha de Luxo é como (e essa palavra só faz aumentar meu apetite) sublimarmos essa necessidade, já que não podemos tomar nosso breakfast diante das vitrinas da Tiffany’s, mesmo que esse desjejum, pela carência, esteja se aproximando, num perigo iminente, de um jejum simplesmente, esse passar-fome ritual: que cena!

Enquanto se degusta uma comidinha rápida, rapidamente, efêmera como ela é, os olhos devoram, sem meias-palavras, até porque é da boca a culpa de se falar e comer ao mesmo tempo, joias, diamantes diversos que, como se sabe, e não é de hoje, são eternos, ou, pelo menos, duram tanto que, durando bem mais do que nossos desejos, podem ser chamados de eternos, esses mesmos diamantes que, dizem, e as garotas, especialmente as loiras, sabem, são os melhores amigos das mulheres, em geral, e das Marilyns, em particular – mas, aqui entre nós, particularmente, isso já é outra história, é como pôr dois filmes no mesmo rolo, misturando a cinturinha-de-vespa de Audrey com o perfil, algo tropical, de Miss Monroe: e isso, sim, é que seria uma boa Doutrina, pagã e pecaminosa, para todos nós (por mais embaraçoso que seja, para mim, dizer isso), permitindo-nos saborear, gulosos (mesmo que dizer isso possa parecer somente “fazer fita”) e egoístas, a América para (nós), os americanos, desde que os de norte não se creiam, numa particularização de uma geografia bem mais ampla, acima de todos os outros, sem que se lhes possa negar que têm lá seus direitos, ao menos, autorais.

Moon River! Se há rios na lua, nem quero saber; nunca me interessei mesmo por uma lua que enche os olhos com uma objetividade insípida, preferindo-a, coisa típica de um sujeito como eu, com a cabeça sempre no mundo-da-lua, uma mais devassa, vista a olho nu (claro!), uma lua com que se pode sonhar. No entanto, não me sai da cabeça, da única que tenho (e já se sabe em que mundo ela vive, levando-me junto consigo), um rastro lunar sobre as águas, feitas, estas, um espelho mais polido do que o vidro mais disposto a tais reflexões. E tudo isso com uma canção ao fundo, não no fundo do rio, submersa, talvez naufragada, mas pairando no ar, sem estar, porém, acima da própria lua, apenas vagando por ali, sem que se saiba bem de onde escapa esse som, conduzindo-nos, nostalgicamente, por veredas pelas quais nunca, antes, andamos; por vales, inclusive os de lágrimas (que isso faz parte da vida, como bem mostram os filmes), em que não nos lembramos de já ter estado; por mares nunca dantes navegados.

Não há dúvida: é mesmo um luxo poder, com lembranças que não são, rigorosamente, nossas, que são de outras vidas, vidas de outras personagens, mais experimentadas nesta, a única com que, indubitavelmente, contamos, ressalvada a fé de alguns em outros mundos, em outras vidas, desde que estes, em nome de uma esperança, não se privem de viver quantas vidas puderem, pela vida dos outros, confortavelmente instalados, aparentemente, só como espectadores, mas – e disso sabe apenas quem nos conhece por dentro (quem?) –, no fundo, vivendo tudo aquilo, intensamente, até porque (viver) de outro jeito não tem graça, não vale o ingresso que pagamos para estar nesta vida, e que é, sabemos, alto demais.



quinta-feira, março 01, 2012

O SONHO DE UMA VIDA BOÊMIA[i]







ada, para quem aposta em que as coisas hão de ficar ainda piores, melhor do que um dia após o outro, mal conseguindo, quem assim pensa, conter a ansiedade, não apenas para que esse tal dia – pior – logo venha, mas para que, sendo essa passagem uma consequência, que o dia de hoje, esse momento atual em que as coisas não parecem ir nada bem, a ponto de se prognosticar, como se um alívio, a piora, fazendo do ruim do agora uma saudade amanhã, passe, o mais rapidamente que puder.

Um dia, o dólar, ainda quando furado, foi capaz de brilhar, mesmo sujo – sem qualquer especulação moral –, diante dos olhos que nele enxergavam uma possibilidade inteira de uma vida melhor, calculando, sem jamais ter aprendido conversão de moedas, baseado apenas no câmbio de suas legítimas expectativas, o que poderia fazer com um dólar: e se for mais!...

Mais, quanto? Um punhado de dólares? Isso é quase uma fantasia que não cabe nos olhos, embora os bolsos, sempre mais generosos, quando se trata de, bocarra aberta, alimentar-se, esses engolidores de papel (sem abrir mão do vil metal), não caibam em si, diante de visão tão promissora. Por um punhado de dólares já se matou – e, a bem da verdade, já se matou por menos, ainda se matará por mais, tenha a moeda o nome que tiver, valorizada no mercado (do) futuro ou já uma reminiscência de algum passado que perdeu seu fulgor. Por um punhado de dólares, nesses nossos dias voláteis, a depender do tamanho da mão, já não se mata tanto, preferindo-se, se se tem mesmo de morrer, uma morte menos “dispendiosa”, mesmo que, morto, não se tenha mais que pôr nem uma mão no bolso.

Olhando-se, retrospectivamente, os filmes de outrora – e outrora, aqui, já dá evidentes sinais do quanto estamos voltando no tempo, cinema que é a mais eficiente máquina para isso –, deparamos-nos com verdadeiras ousadias em dólares investidos, fazendo, nos dedos das mãos, a conta, sempre imprecisa, de quantos punhados foram necessários para se levantar aquela fantasia: e no cálculo do quanto, sempre em dólares, possa ter rendido, é melhor não nos aventurarmos, por se tratar de algo que não cabe nessas nossas cogitações meramente verbais. Sem olharmos adiante, bastando-nos um olhar sobre o orçamento dos filmes atuais, percebe-se, sem que as mãos tenham aumentado, significativamente, de tamanho e, portanto, os punhados representem uma quantidade proporcionalmente maior de moeda, pelo tanto de dólares, o quanto isso se desvalorizou: e nem falo do padrão monetário, mas da capacidade de se fazer, tocando-se em assunto tão sonante, os olhos brilharem.

Para matar (o tempo), pagando-se o preço que a máquina de o passar (o tempo) cobra, alguns dólares furados, mesmo que, convertidos, ainda tenham a pompa de salvadores da pátria. Para morrer de tédio, algum filme, produzido como ousadia formal, mas que não passa de um senhor conservador, por apostar (os dólares) em que os espectadores, cansados de tanto conservadorismo, estão ávidos por alguma ousadia – preferencialmente, nada que os deixe intrigados, sendo suficiente que se convençam de que acabam de testemunhar um momento raro dessa máquina de passar o tempo, de ganhar dinheiro, ganhando os que o ganham, ganhando os que o passam.

E não há qualquer engodo. Um punhado de dólares sempre valerá, valorizada ou não essa moeda que troca realidades opacas por instantes de brilho fugaz, a lembrança de um tempo... Que tempo? Somente de um tempo. E este nem precisa ter mesmo existido, podendo ser apenas mais uma das nossas fantasias, compradas no escuro, pelas quais pagamos em dólares, mesmo que estes devidamente convertidos, sem mudarem sua fé em Deus.




[1] O nome dollar deriva de Thaler, abreviado de Joachimsthaler, uma moeda de prata cunhada pela primeira vez em 1518 em Joachimsthal, na Boêmia

quarta-feira, fevereiro 01, 2012

DIGA AÍ







e me disseres, em resposta a uma explícita pergunta minha ou somente porque, por vontade própria, assim queres me dizer, com quem andas, à espera de que eu, de posse de tal resposta, conclua quem tu és, isso pode ser não mais do que uma armadilha em que eu terei caído, direitinho, na falsa crença de que basta saber quem são os companheiros de alguém para que já se conheça, desse modo, o próprio ser daquele que com eles anda, podendo ser, para tais companheiros, a companhia pela qual um outro avaliará quem é, de verdade, aquele que ora é companheiro, ora o que tem os seus próprios.

Para escapar desse laço, evito, mesmo que me digas, que insistas nesse ponto, com quem andas, de tirar minhas próprias conclusões; e se não me dizes nada, voluntariamente, aguardando que eu mesmo tome essa iniciativa, frustro-te, com receio de, em o fazendo, esteja, simultaneamente, pondo, tolo, o pé no laço, enredando-me na tal armadilha, urdida na confiança de que ou eu cederia à curiosidade de te perguntar com quem andas, concluindo o que, em geral, se conclui, com base nessas informações, ou que, na dúvida sobre se eu faria mesmo a fatídica pergunta, na confiança de que, dando-me, de mão-beijada, a informação, nomeando, um a um, todos os teus companheiros, habituados a andarem contigo, eu, inarredavelmente, concluísse, enfim, que tu és...

Mas, bem mais esperto pode estar sendo tu. Como? Eu, crendo-me, circunstancialmente, esperto, nego-me a tirar conclusões, se sei com quem andas, sabendo disso a minha própria revelia, ou sequer caio na tentação de te perguntar por teus companheiros, acreditando que, assim, descobrindo quem tu és, revele quem eu sou: alguém que confia, demasiadamente, no que o povo diz. Porém, contando já com minha autopresumida esperteza, na verdade, uma autoignorada tolice, ages de caso pensado, na certeza de que eu correria as léguas de te conhecer, a partir dos companheiros que tu tens, abrindo, então, espaço considerável para que descubras quem eu sou.

E tão perfeito foi teu laço, que, se eu te frustro, perguntando com quem andas, ou, ouvindo isso de ti, sem que te tenha perguntado nada, e, daí, concluindo quem tu deves ser, saberás quem sou; se não te frustro e, como já contavas com isso, nego-me a tal, ainda assim saberás, por isso, quem sou.

Se eu tivesse um pouco de tua esperteza, por essa armadilha que tão bem preparaste para mim, mesmo sem conhecer um só dos companheiros teus, sequer sabendo de que modo andas, se é que andas por aí, eu já saberia quem tu és. Como não – e prefiro, em nome da minha vaidade restante, não repetir que sou um tolo –, não sei quem és, não sabendo nem mesmo a quem, ora, dirijo-me, embora desconfie que tu, ao contrário, ou sabes muito bem quem sou, ou se não sabia até então, agora, não há mais dúvida. Minha vaidade, o pouco que dela resta, implora-te: guarda para ti quem sou, e não (o) contes para mais ninguém – principalmente, para mim mesmo.











domingo, janeiro 01, 2012

LA DOLCE VITA











oma açúcar! Diga não ao fel de uma alimentação sem graça, sem goma de mascar (as sem açúcar, pelo menos), sem o refinado prazer de consumir açúcar, mesmo que isso, mais do que os olhos, custe os dentes, que não deixam de estar na cara.

Com’a açúcar, com direito a um sono profundo, sem dar a impressão de estar consciente ou não – melhor não! –, sonhando com doces, que tanto sonho é um bom doce, quanto os melhores doces são um sonho, e até, já que não se controla tanto assim os (próprios) sonhos, uma ou outra gotinha de amargura, uma “pitada” de angostura, um fel que nos alerta, que nos diz já ser hora de acordar para a vida, adoçada artificialmente, com um gostinho de engana-tolos, tolos que somos para nos deixar enganar tanto por um discurso açucarado, quanto pelo amargo que abre a boca, a própria, para falar mal dos outros, da boca alheia, e, sobretudo, dos doces em geral, e do açúcar consumido, em particular, embora não guarde discrição a respeito do que diz, divulgando em público o que fazemos algo às escondidas, temerosos menos dos danos nos dentes, mais das sanções sociais, essa espécie de cala-boca em grupo, por termos sido, eventualmente, flagrados no ato, nessa preferência escandalosa pelo branco em pó – ainda por cima, como confeito –, em detrimento do, se não preto, mais escuros, que preferem, mascavos como gostam de ser chamados, a associação com o (tom) dourado.

Se se dá o sangue para viver, por que não se pode carregar as consequências de uma overdose necessária para se virar a página, quando o livro é pesado demais para se o folhear com a casualidade de uma história qualquer? Ou de um livro de receitas, ilustrado, só com doces, com um realismo que não ludibria somente os olhos, mas engana também a boca que, como se tocada no ponto certo, abre suas compo(r)tas e deixa a água correr solta, quase pingando, numa baba que não é exclusividade das moças mais derretidas, sobre a página que exibe uma compota de se admirar ajoelhado, devorando cada fibra do papel – e depois ainda dizem que ao açúcar refinado faltam as tais incensadas fibras, que ele são só calorias vazias de mais nutrientes, como se isso fosse pouco: digam isso a quem passa frio, a quem se arrepia só de pensar num doce, até nos mais bem-comportados, aqueles que, nada rebeldes, sem intenção de virarem a mesa, aceitam esse revisionismo constante, quase pedindo perdão por conterem açúcar, fazendo isso, porém, com um refinamento que é de amargar, duro de (se) aturar?

E falam na qualidade de vida para banirem o açúcar, como o inimigo visceral dos nossos dias, figadal mesmo, dos mais cruéis que se pode conceber em dias-de-fel, introduzindo uma sensaborona longevidade, uma expectativa de vida sem doces perspectivas, um viver só para contar a história sem sentido de só comer o permitido: isso lá é vida?!

Sequer se pode dizer que é uma vida filha-da-puta, porque esta, se não é de todo permitida, não é tão proibida assim, ainda que, no fundo, sobre-lhe fel. Mas quem paga (para viver essa vida, e todos nós o fazemos, desta ou daquela maneira, à vista, com dinheiro bom, ou com um viciado cheque sem fundos) pode exigir que a vida deixe de lado suas amarguras-vadias e ofereça, sabe-se lá tirado de onde (e eu lá quero saber disso!), o açúcar pelo qual se paga.

Enfim, entreguemo-nos – de bandeja, preferencialmente – à boa companhia dos doces em quantidade: por que falar em qualidade, se olho-de-sogra, visto de perto, não vale nada, mas, doce e coco recheando uma ameixa, com um cravo (como se fosse a menina-dos-olhos), é uma delícia, especialmente quando são muitos?

Entreguemo-nos ao açúcar bandido! Sejamos ainda mocinhos, com dentes perfeitos e crentes numa vida de dar água na boca, ou sejamos já daqueles que têm histórias amargas suficientes para um livro de receitas escrever, receitas de como viver bem, sem jamais chamar, meloso, de docinho de coco a um bem-querer filho-da-mãe, cuja mãe, na hora da vingança, sogra que é, chamaremos, olho no olho, de ameixa seca.