domingo, dezembro 01, 2013

"TODOS JUNTOS VAMOS..."





Lá se foram os dias de marcha-soldado, com a cabeça devidamente(?) de-papel, num exercício de militarismo precoce, em parte, sustentado pela imemorialidade das guerras que parece lhes emprestar certo atavismo, psicológico ou histórico - na hora da batalha, isso pouco importa -, especialmente entre os meninos, mesmo entre os pacíficos, talvez bem mais entre estes, como antídoto à suspeição, por um diagnóstico comprometido com os preconceitos do próprio médico, de indesejável feminilidade, não raro sendo apenas o resultado caótico de uma pantomima infantil, desequilibrada por natureza (até aprender a andar com as próprias pernas sobre o fio da aceitação geral, ainda que pagando o preço de usar, então, "pernas mecânicas" e que sequer foram moldadas levando-se em consideração o modelo que virá a usá-las, mas uma prótese que, tamanho único, "tem" de entrar, tem-se de nela(s) entrar, se se quiser andar com alguma certeza de ser aceito, caso contrário, o fio é frágil), confundindo-se esses trejeitos desajeitados com um desvio de conduta, sem mesmo sentir responsável por esse ziguezague, a mão que, pela mão, vem trazendo essa infância adiante no tempo.

Já não se veem essas "manobras de guerra" nos pátios das escolas, restando, quando muito, numa saída programada, a ordem unida, mão tocando o ombro do colega à frente, assim como o seu é tocado, ao menos agora com uma mistura de gêneros, já que ar Forças Armadas admitem o feminino: e não é de todo estranho especular que o fim dessa pedagogia coincide com o rompimento de uma trama histórica, contemporânea, urdida nos quartéis (para onde iriam - para onde mais iriam? - os soldados, caso não marchassem "direito"), com efeitos perduráveis, cuja não percepção imediata, como um vistoso quepe de papel, talvez de jornal com as notícias das guerras do dia anterior, muito maior esse chapéu "oficial" do que a cabeça assim ungida, evidencia seu enraizamento, dando seus frutos com "naturalidade".

Crê-se, agora, ser essa era já afastada demais e isso só porque se pode gritar palavras de ordem, numa insubmissão à autoridade que não se renova, lançando-se mão de um repertório que talvez reforce mais, por um mecanismo sutil, a autoridade contestada do que ameace sua solidez, sem que se ouça, de pronto, uma ordem de prisão, havendo, inclusive, num arranjo de enrubescer os mais nostálgicos, proteção policial para a desordem(?) ensaiada: catártica para os que se acreditam dela protagonistas, mesmo que não tenham uma fala própria e só façam parte do coro, nessa tragédia juvenil, que assim sentem-se como se vencendo os perigos de um rito de iniciação misterioso, aptos para a vida de desafios - e, por ironia, é possível que o próximo desafio seja apresentar-se, no outro dia, logo cedo, pela manhã, que é a hora dos soldados entrarem na ativa, para o...serviço militar obrigatório, reservista de prontidão para uma guerra sem fim -, e não menos propiciadora de uma catarse para a vasta assistência, seja aquela da primeira fila, seja a que passa pela calçada desse teatro de marionetes, sem fios, o que reforça a ilusão de liberdade, na medida em que, patrocinadores passivos desse desfile, cuja iconoclastia se resume a quebrar ídolos já trincados, acham-se assim cumpridores dos seus deveres didático-paternais de mostrar aos filhos que é preciso ir à luta, desde que a manifestação não ocorra justamente na hora do jogo da seleção, na hora marcada para esse delicioso ópio, talvez o único, dado o preço das papoulas, a que se terá acesso.

"E de repente é aquela corrente pra frente..."


sexta-feira, novembro 01, 2013

O REAL VALOR DE UM BERRO








anhar no grito, acreditem (ACREDITEM!!!), já foi, um dia, civilizado. Aliás, aí está o começo da (nossa) civilização política. Naquela Grécia, menos berço da democracia do que manjedoura, em que pese a contradição pagã, da nossa fantasia de igualdade, de povo, de poder, naquela mesma Grécia em que democracia não era para o povo, sendo, antes, para os melhores, numa aristocracia, ou para alguns poucos, numa oligarquia, ou para os que podiam pagar (por ela), numa plutocracia, aprendia-se, desde cedo, sob a orientação de um legítimo cidadão, ainda efebo então (e deixaremos de lado outras “orientações”, por mais historicamente pertinentes), a arte da oratória, da retórica, a arte de se sofismar, a arte, enfim, de ser fazer ouvido, quando as questões centrais eram discutidas na Ágora, com todos querendo falar, quando se podia ganhar (ou perder) no grito.

Hoje, tão mais civilizados, ainda lutando com uma democracia que insiste em não se levantar do berço, ora preferindo os braços polpudos dos plutocratas, ora os afagos poucos, mas concentrados, dos oligarcas, ou a glória de ser embalada pelos (melhores) aristocratas, vencer “no berro” é lançar mão, rápido no gatilho, de uma arma cada vez mais perigosa, e não por um aumento no seu poder de fogo, mas por estarem nas mãos de poucos, espécie de oligarcas que não aspiram a ser os melhores, embora isso possa fazer bem a sua vaidade, mas preferem ser plutocratas, porque sabem, como se herdeiros da mais genuína lógica formal (também nascida na Grécia), que com dinheiro podem passar pelos melhores, comprando votos, se preciso for, ou forçando a venda da aceitação alheia, no berro e no grito, não se sabendo, a essa altura, o que mais intimida, se o “berro” em silêncio, ou se um grito de verdade, mesmo que o “berro” seja de mentirinha.

Naquela Grécia, vivia-se como civilizado(s), ainda que esse conceito de civilização, hoje, nos surja tão elitista (termo tão caro aos democratas que se creem melhores só por se juntarem, circunstancialmente, ao povo), vencendo no grito. Agora, no berro, sequer se pode morrer assim, civilizadamente: e talvez esteja aí nossa mais profunda experiência democrática, na medida em que, morrendo-se assim, junta-se, na mesma vala-comum (ressalvado o velório diferenciado), o democrata genuíno, o plutocrata descuidado, o aristocrata que, pela primeira vez, vai conhecer o pior dos mundos, e o oligarca que, de tão assim, sempre andando com poucos, viu-se encurralado numa luta numericamente desigual.

Agora, a Ágora é um lugar distante, sempre muito longe, por mais que, no mapa, esteja nas proximidades. O lugar das decisões é projetado com isolamento acústico para que só se escutem os “berros” de dentro, onde não entram os gritos de fora: e quando, por descuido da segurança, entra, aí, um “berro” que não seja de um dos de dentro, o alarme soa, como um grito geral, mas, como sabe todo aquele que, um dia, já se espantou com o soar repentino de um alarme, crendo na promessa de sua duração, ele, uma hora, e isso costuma ser logo, cessa, calando os gritos de fora, voltando tudo aos mornos berros de dentro, que sequer são filosóficos, não passando, na maioria (e a minoria não faz diferente), de uns artistas que torcem e retorcem a lógica, como se construíssem, assim, uma nova civilização em que o povo é somente um aspecto formal, sem o qual sua teoria ideal não se sustenta.















terça-feira, outubro 01, 2013

O QUE SE PASSA COM ESSA CABEÇA?




Falar disso é uma maneira, menos incômoda, de trazer o assunto à (minha) cabeça; mas se, ao contrário da expectativa que mantenho, começar a me sentir desconfortável nessa situação - e o sinal pode ser uma coceira repentina -, paro, na hora, e nunca mais volto a pensar em...piolhos.

Houve tempo (que ainda resiste em certas lembranças: diretamente, pela lembrança de uma experiência vivida, mesmo que, então, não se fosse seu protagonista, um herói covardemente atacado por um bando de minúsculos, mas asquerosos, inimigos, ou através de lembranças indiretas, podendo ser estas apenas um testemunhar, como simples espectador, sabe-se lá se se identificando com as agruras do herói ou com uma experiência já bastante diluída para que ainda se a tenha como própria) em que se "catava" piolhos na cabeça das crianças, e nesse mesmo tempo, imagina-se que fora eles, elas, as crianças, não tinham mesmo nada "ali", o que, por extensão, nos leva à moralista conclusão de que nada de mal existe na cabeça de uma criança; e as teorias vigentes de que a coisa, para o bem ou para o mal de todos nós (que, afinal, fomos uma delas), não é bem assim, que toda criança, além dos piolhos, já naquela época, tinha (n)o que pensar, tanto que davam no que pensar, e ainda que, mesmo sem moralizar o ato, houvesse os piolhos, um mal que as atacava, havia, por outro lado, tão "à mão", quem os catasse, com bravura materna de quem, para salvar o filho, não descansa enquanto não esmagar cada inimigo, um a um, lutando até o fim, com unhas, sobretudo com elas, e dentes rangendo num misto de raiva pelos piolhos escapados e prazer pelos que são subtraídos sob o peso de sua unha.

E a vitória seja dada às mães! E louvadas sejam suas mãos! Relíquias sejam considerados seus dedos milagrosos! E não duvido de que uma lasca dessas suas unhas, sujas desse trabalho de morte, ainda faça o milagre de que um filho extraviado, tendo deixado tanta coisa lhe passar pela cabeça, sinta-se, pela lembrança rediviva, talvez reanimado por uma coceira repentina na cabeça, experimente, ao longe, onde estiver, essa volta ao lar - e se o "motivo" não parece dos mais elevados, os resultados desse regresso o legitimam, até porque é muita falta de originalidade, com tantas lembranças na (nossa) cabeça, recorrer sempre a uma "madaleine" (coisa da cabeça de Proust: mas isso já é uma outra leitura).

Se era assim, hoje, como piolhos, crianças que foram, há os que, "tachados" de maus, de cara, sem que se ocupe com o que lhes vai pela cabeça (embora seja um recurso demasiado fácil, e nem sempre justificável, buscar no "mau" de cada homem uma criança vilipendiada, seja por um ataque indesejável de piolhos, seja, com sua própria defesa, pela falta de mão de mãe sobre sua cabeça: nunca se fala do poder da unção paterna), catam crianças.

E catam-nas pelos precipícios que não faltam, pois é mesmo da natureza de toda criança sentir-se atraída por essas visões perigosamente sedutoras; sejam tais precipícios naturalmente desenhados, um relevo que ali está, perigoso, sedutor, talvez originalmente apenas uma notação topogeológica num cume de um nada, sem maior "moralidade" e que, com o desbastar provocado pelo tempo, ficou assim, assemelhando-se a um abismo.

Seria precipitado - e já não somos crianças para abusar disso -, chamando-os, esses catadores de crianças, de piolhos da sociedade, querermos, atirando no abismo voraz todo o conhecimento que muito custou a tantas cabeças, a custa de muitas coceiras, retóricas ou não, esmagá-los, um a um (porque se multiplica, assim, o deleite com esse espetáculo), com as mães na linha-de-frente, já que elas sempre fazem boa figura, mesmo que jamais se tenham (pre)ocupado com o que se passava na cabeça de suas crianças, mal sabendo a origem das coceiras próprias, eu.

Não! não nos esqueçamos, deixados de lado outrora, ocupados com inimigos maiores para darmos atenção a simples piolhos, ( "raspem a cabeça desse moleque, e pronto!"), dos pais, dos homens nessa história toda.

Declarada a guerra, com as mães levando os estandartes, que elas dizem ter tecido, ainda que não saibam segurar uma agulha (e isso não é uma alfinetada misógina), com o lema "salvem nossas crianças", "morte aos piolhos (da sociedade)", seguem-se, seguindo-as, os pais, os homens honrados que, aliás, estão ali justamente para emprestar a essa guerra sua honradez, da qual se crêem fiéis e exclusivos depositários: quantos já se aproximaram de precipícios? Quantos, vendo a coceira na cabeça de uma criança, ocuparam-se dela? quantos, simplesmente, cortaram-lhes a cabeça? Quantos sabem o que se passa na sua própria? Quantos não se "precipitarão"?

A morte, pura e simples, dos piolhos acabará com o mal? Isso não sei: nem sou pai! e homem, não conheço todos os meus precipícios - embora muitos nem me passem pela cabeça.




domingo, setembro 01, 2013

MARAVILHA CURATIVA







Por mais que se queira contestar as coisas do mundo, deste, porque partir para o outro, além de não ser algo que se se disponha a fazer, por vontade própria, ainda que se leve a maior fé nele, é entrar no campo das especulações, nessas plantações de ideias sem compromisso, necessariamente, com a verdade, valendo-se do legítimo direito de pensar o que se quiser, não se pode negar – embora isso seja plantar uma semente no mesmo terreno fértil das especulações –, contrariando os mais “revoltosos”, há, sim, uma ordem natural para as coisas.

O morde-e-assopra, por exemplo, mesmo que isso pareça, tendo-se falado em especulações, o que nos remete a pensamentos mais criteriosamente elaborados, já flertando com a filosofia (talvez com a Filosofia, já que se há, hoje, um campo que faz florescer qualquer pensamentozinho, é esse, gerando safras portentosas de filosofias em sacos), um exemplo aquém das expectativas. É essa sua ordem: primeiro, morde-se; depois é que vem o sopro, como uma lufada de analgésico que atua no mecanismo psíquico, já que, na carne, a mordida continua a doer – a arder, é melhor dizer.

Se, querendo-se andar contra o vento, para exibir sua força, isto é, a própria, e não a do vento, contestando, por extensão, a lei da gravitação universal, num ato de revolto fadado ao fracasso, parte para, antes, soprar, como se assim se oferecesse, de início, o alívio para uma dor ainda não experimentada, e só então é que se chega com a mordida, de nada valeu o esforço em tanto se soprar (sabe-se que alguns analgésicos atuam melhor em dosagem certa, além da qual, mais do que provocar um alívio maior, pode causar um mal a mais), porque, vinda em sua esteira, a mordida não modera seus dentes, não condescende com seu cravar, não recua diante do sopro que, a essa altura, de ar como é feito, já se desfez em si mesmo.

Por outro lado, ainda rolando entre os dedos a mesma moeda, se se morde, mas recusa-se o sopro na sequência, exercita-se, no máximo, um sadismo qualquer, a não ser que se seja criança, considerando-se que seus dentes em leite a chamam para essa experiência, não fechando nossos olhos para uma vingança infante; ou, se só se sopra, sem ter havido, anteriormente, uma mordida que justifique esses sopros, isso não alcança mais do que um fugaz refrigério – e a depender do hálito, prefere-se conviver com o calor.

Longe de mim cortar a cabeça dos contestadores: de algumas, saíram boas coisas; em outros, o melhor que fizeram na vida foi justamente perder a cabeça, mesmo que tenham preferido(?) perdê-la desse jeito, acreditando na possibilidade, cada vez mais remota, de se tornar um herói, tendo aberto mão de maneiras mais prazerosas de, igualmente, ao sabor dessa decapitada metáfora, se perder a cabeça, até porque, com a minha mediocremente no lugar, pouco dada até mesmo às revoluções que lhe são permitidas pelo eixo do pescoço, sublimo nesses revoltosos sem causa a minha falta de traquejo para segurar mastros, levantar bandeiras, expor um estandarte de novas ideias.




quinta-feira, agosto 01, 2013

ALICIAMENTO REAL PARA A FÁBRICA DE FANTASIA





Só se sabe que uma terra é das maravilhas, quando se veio da realidade: só esta é capaz de emprestar àquela a fantasia que nos enche, quase a nos esquecer de que, uma hora, a fantasia acaba (e o tempo é uma realidade que, enganosamente, apresenta-se como fantasia).

Viver sempre, e simplesmente, com todas as complexidades que lhe são inerentes, na vida real, além de ser um atraso de vida, tendo de contar os minutos para escapar de uma impontualidade, é desconhecer o outro lado, talvez com receio de, indo lá, de lá não mais se retorne, percebendo, intuitivamente – porque, no íntimo, acreditamos que a fantasia é mais saborosa que uma realidade, por mais saborosa que esta, circunstancialmente, como é do caráter de todo real, apresente-se – que o fantástico é um país ao qual se pode ir, depois de uma longa temporada na pátria (do) real, mas cujo (real?) valor só é possível de ser mensurado, se não se fica lá, eternamente, pois, assim, o que era fantasia, contrastando com o real, tornou-se, agora, nossa própria realidade, e, por ironia, passaremos a querer voltar à (nossa) antiga realidade, que tomamos ora como ansiada fantasia, já não suportando o peso de viver na própria fantasia, transformada em cotidiano, com todo o peso de uma rotina real.

Em tudo isso há um grande mistério: saber quanto tempo se pode permanecer na realidade, e quando se deve deixá-la, indo, como se este fosse mesmo nosso destino, mais cedo ou mais tarde, rumo à fantasia mais desregrada; saber quanto tempo se deve ficar na fantasia (embora tanto o tempo quanto o “dever” não façam, na nossa fantasia, parte de um mundo que não seja a nossa realidade), e quando se deve dar adeus a toda essa ilusão, retornando a casa, uma casa que, sendo real, tem cara de casa, e não, como acontece na fantasia, pode ter cara de tudo, até mesmo de casa, desde que essa seja uma “casa de fantasia”.

Se eu conhecesse esse segredo, não creio que pudesse ficar rico, mesmo que isso seja uma fantasia que nos “assalte”, corriqueiramente, em meio aos tropeços de nossa realidade esburacada: e não poderia porque fantasia não é algo que se compre, ainda que haja que se disponha a vendê-la, já que, ao se a comprar, estar-se-á introduzindo o real na fantasia, e isso seria como comprar gato por lebre – personagens, aliás, de uma boa fantasia.

Caso eu conhecesse a solução para tal enigma, daria, a quem quisesse receber, gratuitamente, porque esse doar, de graça, também faz parte, envolvidos num toma-lá-dá-cá diário e cruel, das nossas fantasia, especialmente aquela de, tendo ido desta realidade, possamos ir para uma melhor.

Enquanto só podemos ir á fantasia de quando em vez, vamos lá! Não nos apeguemos demasiado à realidade, da mesma forma que, seduzidos por um gato fantasiado de lebre, evitemos, pondo os pés nessa terra irreal, afundarmos também a cabeça, ainda que muitos crêem, e também eu, que não vale a pena entrar numa fantasia se não for por inteiro – e este pode ser mais outro mistério da nossa vida real.



segunda-feira, julho 01, 2013

A LIVRE UNIÃO DE PAPILLON COM ALCATRAZ





Uma prisão sem paredes parece ser, especialmente, aos olhos que só a veem de fora, a fantasia de todo preso, sendo muito mais a própria fantasia dos que observam tudo isso com liberdade do que, propriamente, a do preso, fantasia, daqueles, do que seja um preso, de como ele, preso, se sente, e do que, sentindo-se assim, preso como está (ou como é), ele fantasia, aos olhos do mundo – preso também, a sua maneira, mas, tecnicamente, livre –, o quanto deste mundo que pode ser observado de dentro da prisão, de se sentir na mais completa liberdade, não levando em conta os olhos-espectadores, que, sem paredes, e, portanto, sem grades, porque, então, não haveria base para sua sustentação, ou não é uma prisão – se é, não passa de uma fantasia – ou é, sim, prisão, e sendo isso que é, que diz ser, não pode abrir mão das paredes e, em consequência, das grades.


Assim é que o preso fantasia, enquanto, de cá, os olhos fantasiam não só o preso, mas ainda suas próprias fantasias, podendo ser que a fantasia do preso seja acerca de quem, fora das grades, observa-o, fantasiando-se, na sequência, a fantasia que se tem das fantasias do preso, num jogo, de semelhança especular, como um espelho frente a outro, em que não há possível vencedor, porque, afinal, tudo aí não passa mesmo de fantasia, e o vencedor, determinando, com sua vitória, o fim do jogo, poria terno à (própria) fantasia.

Certamente, haverá quem interponha a tudo isso – se não com certeza do que faz, apenas para realizar uma fantasia, a de contestar –, a esse (meu) desfile de fantasia(s), de luxo duvidoso, de originalidade suspeita, a experiência pessoal (nem sempre sentida na própria pele, podendo saber disso através de alguém “muito próximo”, ou até por si mesmo, porém, com a pele, onde se deveria sentir a tal experiência, coberta por uma fantasia que, em que pese a leveza de um tecido fino, esconde-a, de verdade) de que existe (um) preso, ainda que todas as portas estejam abertas (e portas pressupõem, em nome da boa arquitetura dos lares, que haja paredes), confundindo a ausência de impedimentos visíveis com a liberdade total, ou a presença de uma parede, por menos “notável” que seja, com ou sem grades (e a segurança pessoal, hoje, exige-as, cada vez mais), com o cerceamento de um legítimo direito, o de ir e vir. E, penando assim, esses devem, entre todos, ser os mais fantasiosos.

Fantasia recorrente, quando fantasia era um traje obrigatório, era a de preso, com fantasiosas roupas listradas, quase um pijama (de) aposentado, por vezes, exagerando na fantasia (se é possível estabelecer limites para ela), arrastando, com esforço fingido que, no meio da fantasia toda, acaba-se esquecendo, uma bola de ferro atada ao pé: eis a liberdade de se fantasiar do que se quiser. E quando ao fato de a realidade ser bem outra, de presos (já) não andarem, quando têm permissão para fazer isso, com uniformes listrados, limpos, unidos a grilhões, se ela fosse assim, então, a fantasia, para ser o que é, deveria ser outra: quem sabe a fantasia preferia não viesse a ser a de um livre total.

Mas, como seria tal fantasia? Sendo um livre total, em si, uma fantasia, como se a expressaria, por fora, essa ausência de grades, inclusive por dentro?

Como tal homem (ou mulher), livre assim, não há, cada qual com suas próprias correntes – comumente, no pescoço, embora haja os que a trazem justamente no tornozelo, lugar preferido dos grilhões –, pode-se fantasiar do jeito que for, até mesmo com uma camisa-de-força, desde que se afirme que isso é que é liberdade, não dando, no entanto, a mesma aos olhos que, vendo aquilo, sentenciam: que prisão!




sábado, junho 01, 2013

MISOGINIA (ou a antropologia conservadora de uma maçã entalada)











e vidro, frágil assim, mesmo que deste haja aqueles que, de tão fortes, parecem mais ser feitos de aço, mas, ainda assim, são o que são, e são (de) vidro(s), sim: então, é que são, assim, derrubadas, uma a uma, nessa fileira de dominós perfilados pela arte e paciência (talvez a única arte aí seja somente a paciência em se ordenar tantas pedras, nenhuma fundamental), as utilidades do homem neste mundo, e que, apesar do seu cultuado brio de espécie evoluída, longe já as primitivas esponjas, espongiários que formam um estágio entre a célula única e os nossos tecidos variados, utilidades que nem devem chegar a mil – e mil e uma já é conta de mentirosa, ou pelo menos de mulher fingida, Sherazade que todo homem crê que elas sejam, mais noite, menos dia.

E a utilidade, se pudermos chamá-la assim, derradeira, verdadeira salvadora da honra e orgulho masculinos, são as tampas de vidros de conserva - ou melhor, útil aí um homem só para destampá-los, às vezes, empregando uma força desnecessária para o ato, embora indispensável para valorizar a mão-de-obra empregada nessa abertura.

Mas, até isso vem caindo por terra (tendo-se de escutar, o resto do dia, as imprecações pelos estilhaços espalhados com uma queda, além daqueles outros, de vidros que nem vinham ao caso, por se ter lançado à cara da reclamante que, se era para abrir o tal vidro, ei-lo aberto, espatifado no chão). Em nome de uma maior praticidade, com um mecanismo inteligente, que está à altura da fêmea, de regra, menores que os homens, tantas ainda, apesar de partilharem, biologicamente, da mesma espécie, ainda na fase das esponjas domésticas, mesmo quando esta não é a etapa principal das suas mil e uma atividades, deixam-se os vasilhames de vidro para trás, provocando um súbito desemprego da mão (de obra) masculina, hábil em torções de tampa, trocando-se-os, homens, agora, por uma latinha (ainda por cima, reciclável, como os homens não são, o que enche os olhos das responsabilidades-de-alumínio, leves, por sua natureza descartável), lata que sequer tem tampa, tampa de enrosco, tendo apenas, como um compromisso com a modernidade traduzida não na independência da cozinha, mas em menos tempo nesse ambiente, um anel metálico, coisa de valor desprezível no comércio próspero de quinquilharias, especialmente para quem tem ambições (mais) “brilhantes”, anel que se deve, com o dedo, levantar, com o risco de se quebrar a unha, nas mulheres que as mantêm alongadas, o que, por si, já é um risco para qualquer homem que se preze, embora haja muitos que prezes justamente as unhas, como tatuagem fugaz a provar, quase sempre por trás, sua masculinidade estoica.

Reajam, homens! Agarrem-se ao que lhes resta e façam disso o (seu) diferencial. Apregoem os perigos dos anéis e semeiem desconfiança em tudo que se abre com tanta facilidade. Alardeiem ainda as qualidades (algumas tão transparentemente óbvias, que só se deve mencioná-las a quem não evoluiu o suficiente nessa nossa escala(da)) do vidro, falando em proveito próprio, em seu aproveitamento posterior àquele esvaziamento a que estão destinadas todas as embalagens de vidro, numa mostra, gramatical, de que, sendo masculino (não digamos macho porque há no mercado vidros frágeis demais, a ponto de comprometerem a verificação da verdade, até mesmo com critérios rigorosamente científicos), o vidro tem muitas utilidades, não se esgotando, elas, mesmo que não cheguem a mil, na ereção de um anel de latão sobre o qual sequer se jurou amor eterno, mesmo que juras assim sejam, entre as juras, uma promessa tão nobre, quanto os anéis da tampa das latinhas.

Não se deixem, homens, levar pelas histórias delas, na cama, todo santo dia, a mesma ladainha, de que suas mãos estão em petição de miséria, tudo por causa da esponja de aço – e por um dá cá aquela palha (que, afinal, sou quase do tempo das mil e uma noites, ainda que nada fantástico), elas choram misérias, capazes como são de acabar até com nervos de aço. Aí, o jeito é ser “esponja”: utilidade primeira de todo macho que se preza.



quarta-feira, maio 01, 2013

ACOBERTANDO SOB COBERTAS SEM TETO O BARÃO DE COUBERTIN



Saber o que os sonhos querem dizer – interpretá-los, quero dizer – é o sonho de muita gente séria, do tipo pouco sonhador(a), que só empenha seu tempo, e mesmo suas esperanças (não vendo nisso um sonho vão) em projetos de real importância, crendo, como crê(em), que, apesar de haver um “mundo dos sonhos”, há pouco espaço para fantasias, necessário que é se ter os pés no chão, cabeça no lugar (e este não é nas nuvens) para se levar a cabo tarefa como essa, a de “ler” os sonhos, com total domínio de sua semântica; e de sua sintaxe também, haja vista que, por mais que se multipliquem, os sonhos não são uma simples adição em que a ordem não altera jamais a interpretação, sendo mesmo a forma com que se encadeiam (no espaço mais livre que o homem conhece, mesmo que, para alguns, os sonhos estejam irremediavelmente atados a necessidades eternamente insatisfeitas) o que lhes dá (real?) significado.

Mas, como sonhar, dizem, é de graça – e, pelo jeito, dizer o que se quer também, se não houver um correspondente cala-boca em tempo real -, apesar de não os levar tão a sério, querem interpretar os sonhos aqueles que, sonhadores (do ponto de vista dos outros), esperam encontrar aí a solução para suas aflições, seja como uma revelação direta (da mera fofoca onírica até um cochicho divino, se a existência disso não passar de simples boato) ou mesmo, o que pode lhes surgir como garantia de problema prestes a ser solucionado, em esotérica explicação, desde que já se seja iniciado em tais mistérios.

Associar os sonhos a animais é quase tão antigo quanto se dizer, com expressão já anacrônica, que essa associação “é o bicho”. Os sonhos talvez sejam (e eu aqui querendo interpretá-los: não é mesmo para se me levar a sério!) apenas um jogo, eventualmente, tão simples como um infantil jogo da memória, com cartas desenhadas à semelhança da bicharada, e em que a diversão toda é se encontrar, como numa arca mítica, os respectivos pares, nem sempre de gêneros diferentes, quanto, ainda jogo, um cujas regras, irrequietas, não se mantêm no lugar, fixas como recomendam certas regras do jogo, mas se alterando a cada sonho, como se assim se quisesse, num jogo de gato-e-rato, brincar conosco, pois, enquanto nos pomos a interpretar esses sonhos de acordo com uma dada regra, os outros, na sequência, já não a obedecem.

Tão pouco razoável este arrazoado pode parecer que, com altivez fora de hora, a suspeita (sobre mim) se levanta, pedindo a palavra: não terá passado tudo isto de mais um sonho, de um sonhador que não tem sua cabeça no lugar, tendo-a, como um pesadelo “significativo”, no corpo de outro, bicho?!


CHICO VIVAS

segunda-feira, abril 01, 2013

GRIFE GRIFFITH: A GRIFE



Intolerância é um filme que estamos “cansados” de ver, a ponto de, diante de mais uma de suas exibições (em geral, não há intolerância discreta, silenciosa, mas, ao contrário, como se isso fosse mesmo uma parte indissociável de si, ela insiste em se fazer notar, em se fazer escutar), nós mesmos, com o argumento sedutor de não pactuarmos mais com ela, demonstramos, sem a percepção imediata disso, nossa própria intolerância, a menos que, num cálculo que carece de prova, se considere que uma intolerância dirigida contra outra anule esta, não se esclarecendo então o que se faz daquela (da nossa) que sobra de toda essa questão, tal qual a intolerância de antes, só por mirar a de outros, pudesse ser chamada com qualquer outro nome, por exemplo, “corajoso combate à intolerância”.

Muito desse filme que já vimos nos chega num estado de aparente descanso, presas fáceis, em poltronas ou sofás cuja maciez pouco ergonômica nos dá a ilusão de amortecimento contra os choques da realidade, de discursos que, na forma, se constituem em (quase) impecáveis peças de oratória (mesmo que demagógicas: porque a demagogia exige certo talento para se puxar os fios corretos que (nos) manipulam – pela emoção, barata que seja), mas que, como um bônus(?) que vem junto, a nossa própria revelia, sem poder ser vendido separadamente, com os sentimentos sinceros de justiça, carregam consigo as sementes da intolerância.

Poucos, é verdade, hão de ter assistido à Intolerância. Entre estes (poucos), os mais desavisados devem ter-se afundado no sofá, ainda que em um nada macio (seja por preocupação ergonômica, seja porque, com o tempo, ele perdeu mesmo sua original maciez, com prazo de validade improrrogável), cedendo às horas de (tanta) Intolerância, de um passar de épocas por vezes confuso, por vezes com referências que não nos são mais corriqueiras em tempos em que nossa memória só registra a História de algumas horas atrás, ficando tudo o mais relegado como matéria-prima de desbravadores de antiguidades.

Forçar alguém a ver esse filme, contra sua vontade, apesar dos muitos prós que agem a seu favor, seria intolerância. Não se dar o direito a alguém de pensar livremente, sem temor do quando (desde que em pensamento ainda) isso pode ir de encontro aos princípios de civilidade (que mudam; que nem sempre são honestos, muitas vezes impostos com outros interesses), mesmo que pareçam pensamentos eivados de intolerância, não a evita, talvez mesmo, silenciosamente, com a falsa crença de termos matado a tempo uma intolerância em progresso, alimente-a, fortificando-a, até que, sem mais controle, ela surja, exibindo-se toda, falando alto (o barulho é motivo de muita intolerância, tanto por parte de quem o produz, que não vê (ou escuta) nisso nada de desagradável, quanto por quem é obrigado a, contra sua vontade, escutar), sem que possamos dizer que se cale, inclusive por medo de nos mostrarmos intolerantes ou por temor do que ela é capaz, se se voltar contra nós, para extremo gozo dela, cada vez mais dona de si.


CHICO VIVAS

sexta-feira, março 01, 2013

CONTAGEM REGRESSIVA PARA UM FUTURO RETRÔ









e nisso que dá toda essa evolução! Essa ânsia por abandonar, como se uma velharia que compromete nossa particular contemporaneidade – logo nós, homens, que não é de hoje que estamos aqui! –, todas as “analogias”, esse recurso que tem lá sua importância na retórica, e tudo isso para que possamos exibir-nos, completamente, digitalizados, como se aptos a nos abrir (ou a nos fechar) a um simples toque, embora já o façamos ao comando da voz, da voz com comando para nos fazer nos abrir ou nos fechar, sendo esta uma tecnologia, ao mesmo tempo, antiga e das mais modernas.

Foi-se o tempo em que podíamos, respiração suspensa, seguir os passos, sempre corridos, de uma jornalista, pau-para-toda-obra, como costuma acontecer com quem quer mostrar serviço, sendo essa, às vezes, a única maneira de se mostrar o que se sabe fazer, correndo de lá para cá, jornal já no ar, em horário nobre, quase a chamar pela matéria que ainda navega, aparentemente, naufraga numa ilha de edição climatizada, sem, ao menos, uma água de coco de clichê ou uma companhia sexy – mais clichê, impossível!

De um lado, espectadores experimentados, sabemos que, na hora agá, tudo há de se resolver, mas, por outro lado, como se fôssemos marinheiros de primeira viagem nessa aventura às escuras, torcemos as mãos, mexemos as cadeiras (as nossas, e as da sala, se estas não estiverem devidamente com os pés bem plantados no chão, nesse ambiente irreal), contando nos dedos os segundos que faltam para que, como se isso ainda exigisse uma eternidade toda, a fita (Beta, U-Matic ou VHS, como a conhecem os que a trata(ra)m mais “domesticamente”), saia de onde está, atravesse corredores cheios de uma gente apressada misturada a uma (mesma?) gente que parece não ter o que fazer, chegando, afinal, onde deve aportar e, enfim, com um toque, tudo vai – ufa! – para o ar.

Agora, de um só ponto, faz-se quase de tudo, sem correrias, sem contagem regressiva, mesmo que tudo ainda, em lugares assim, respire um permanente dead-line, coisa de quem só sabe trabalhar com a corda no pescoço, com o pescoço na guilhotina, sob ameaça, sob pressão, tal qual se tudo isso fosse justamente o alimento de uma boa rotina. Mas, apesar de tudo, correr contra o tempo continua sendo um tema recorrente, quando não para se movimentar um boing, com seu jeito pesadão, para, com tantas tarefas digitalizadas, encontrar espaço, nessa correria sem fim, para um...toque.

Curioso é que “dar um toque” se transformou, bem antes da tecnologia de ponta apontar para o fim do analógico, numa promessa vã, dessas que são feitas por se fazer, e não para serem cumpridas. Dar um toque é fazer votos de falar, de procurar, quase sempre, a distância, por telefone, digital, claro, numa impossibilidade de aproximação real, a ponto de, ao acaso de um encontro, esbarrando-se pelos corredores desse labirinto sem graça a que chamamos mundo, mais facilmente, cara a cara, liga-se o telefone, para falar com quem esta ali mesmo, a nossa frente, do que se é capaz de, efetivamente, com um afeto que vai ficando, de tão desusado, analógico, dar um toque – e não por não se queira tamanha intimidade, por mais que isso se dê à flor da pele, e sim porque, como um (velho) relógio de pulso, a corda, como ponteiro, contrariando os que mostram, com exatidão exasperante, as horas em dígitos inquestionáveis, o toque se perdeu no tempo, sendo pouco mais, hoje, que uma reminiscência, um passatempo nostálgico para quem ainda tem algum a perder, porque, afinal, estamos, permanentemente, em busca da evolução.

Intrigante, nessa rede, são os furos, cada vez maiores, mas pelos quais, podendo passar um tubarão (até todos, o original e suas continuações), não passa um toque. E se, por descuido, for ao ar uma matéria que, em lugar de exibir as filas, madrugadoras e quilométricas, para comprar, antes dos outros, o telefone da vez, acabe mostrando duas pessoas a se tocarem, ainda que, rigorosamente, dentro da moral-padrão, isso será um escândalo em rede nacional, capaz de derrubar a audiência, acabando com a carreira (que custou tantas correrias) de um(a) jovem jornalista, ávido para mostrar serviço.



sexta-feira, fevereiro 01, 2013

QUEM MATOU O MITO?














e fato, o mito existe. E se existe, nunca foi, “verdadeiramente”, um mito: isso diria alguém que sempre desconfiou (e, agora, mais do que nunca, e mais do que desconfiança, tem já certeza) de que mitos não existem. Mas, como não me acho entre estes, fico como o fato – o que, enfim, quer dizer, que optei pelo mito, pelo menos por “este”.

Quem já viu – e há tanto deixou de ser visto, que é bem capaz de, por mais que se prove com fatos sua existência, crer-se que não passa de mais um mito – um certo filme de John Ford (O Homem que Matou o Facínora), há de se lembrar, talvez com uma memória que corrija da minha a ausência de alguns fotogramas, e até, pois tenho de isso admitir, diante do fato incontestável que são meus lapsos, de sequências inteiras, e não apenas de um filme que, apesar do material altamente perecível que é o celulóide, pode ser reconstituído pela memória dos “bem-pensantes”, mas também de trechos completos de uma história que depende (quase) exclusivamente de mim, em muitas de suas sequências, como fonte primária para qualquer reconstituição de época(s), há de não ter esquecido, como dizia – e quase me esqueço do que estava a dizer –, de James Stewart, um provinciano homem da lei que faz carreira política na esteira de um acaso que o faz capturar o homem (o facínora) mais procurado do oeste americano, provavelmente, embora facínora nunca tenha sido “privilégio” dos americanos, adquirindo, assim, súbita reputação à custa de Liberty Valence: que nome para um facínora!

De volta a sua província, talvez, porque já não me lembro muito bem, querendo expiar uma culpa, a de ter-se valido de uma notoriedade espúria, tão contemporânea. Um editor de jornal, provinciano este, provinciano aquele, embora já bastante cosmopolita por seu entendimento do “valor” da imprensa, assegura ao senador, como se, então, mirasse um jornalismo-de-resultados, se resultados não tenha sempre sido o objetivo do jornalismo, em graus variados, de acordo com a proximidade ou afastamento do poder, porque este(s) sempre há - poder, provincianos, cosmopolitas, facínoras, senadores, jornalistas e leitores –, que quando o mito supera os fatos, deve-se imprimir o mito.

Uma imprensa de fato, de fatos, exclusivamente (e como ela adora uma exclusividade, seja fato ou seja mito), será que não é o mais bem forjado dos mitos, desses que, de tão fortes, imprimem-se como verdade a ferro e fogo, embora, na verdade, haja, na imprensa, tantos mitos: provincianos querendo se passar por cosmopolitas, cosmopolitas desejando retornar à província (preferencialmente, recebidos como um James Stewart), provincianos tentando convencer de que apenas se passam por um, porque, assim, acreditam, podem chegar mais rapidamente aos (seus) resultados, além de uma boa gama de combinações que a imprensa permite, mais ou menos, a depender do quanto se esteja no círculo mais próximo ao centro do poder.

Se, um dia, virem um filme como esse (e filme em preto-e-branco existiu mesmo, ou é só um mito do cinema?), hão de, em vez de se acharem antiquados em sua política de fato(s), ter certeza de que essa é uma obra que não se baseia em fatos; que jornalismo, de verdade, não é isso; que imprensa é aquilo; e que o que se vê na "tela" (um quase anacronismo, um quase mito) é só mais um mito da indústria do cinema para - coisa feia, dizem alguns – alcançar seus pretendidos resultados.




terça-feira, janeiro 01, 2013

DI-FAMA (QUE) EU ENTENDO


É sabido do que os homens, sabidos ou nem tanto, ou simplesmente uns tolos por se crerem assim tão sabidos, são capazes para alcançar a fama: e, quase sempre, embora não seja rigorosamente necessário que sejam mesmo sabidos, já que alguns podem se valer do acaso (esse nome que, frio demais, costuma ceder seu lugar a uma “sorte” mais acalentadora), para se ter a tal fama se torna indispensável dar-se a conhecer, por vezes, não se podendo mais distinguir, tão tênue a linha de separação, se a fama traz esse (re)conhecimento ou se, ao contrário, ser (re)conhecido é que, como consequência, cauda indissociável à massa luminosa que forma o cometa (famoso, ainda que, aqui, não tenha nome), arrasta atrás de si a fama.


Este homem(?), no entanto, não sei se por se achar muito sabido (acreditando ser rematada tolice buscar a fama pelo mesmo método que tantos, há tanto, o fazem) ou se, mesmo sem o saber (mesmo sem se saber assim), por ser o tolo em pessoa, resolveu buscá-la, nesse joguinho de esconde-esconde de que a fama gosta, justamente onde, supõe(-se), ela não se esconderia jamais, talvez por imaginar, como faria qualquer criança mais “sabida”, que, sabida, a fama não iria se homiziar num lugar já conhecido, num daqueles que seria primeira opção na procura. Assim é que, otimista, sorrindo como se sentisse o cheirinho da fama, se decide pelo anonimato.


Lá chegando, a primeira surpresa: não está só. Segunda surpresa: cria que, embora houvesse muitos anônimos no mundo, cada um era só, como se não lhes fosse dado se juntarem. Lá chegado, decepcionado ao perceber que sua ideia original havia sido copiada (que sabidões!), não lhe passando pela cabeça que fosse o próprio copista da ideia (original?) dos outros, mais um deles, viu que, além de mais concorrentes do que pudera imaginar (na verdade, imaginara que no anonimato estaria só), aquele não deveria ser um lugar frequentado pela fama, considerando que, pela quantidade de anônimos ali à espera, almoxarifado de solitários-de-prateleira, ela nunca dera as caras, não compreendendo, no rastro dessas conjeturas, como eles ainda se mantinham em tal lugar, e não desistiam de uma vez, seja da fama (o que diminuiria a concorrência), seja de alcançá-la por ali.


Que há homens ciscando em torno da fama é certo. Muito provavelmente, haverá algum que resolva, esperto como ele só, seguir na contramão, como para evitar o tráfego congestionado, e acabe indo em direção ao anonimato: quem sabe se a fama, sem paciência para engarrafamentos, não esteja lá, a sua espera? Se um desses lá chegar, não há de encontrá-la. Encontrará, porém, todos aqueles homens ainda lá, pois, sabe-se lá por quê, mesmo não achando o que (tanto) procuravam, deixaram-se ficar, ou apenas não concebem mais sair dali, daquele anonimato: e nem este relato aqui há de dali lhe arrancar, atirando-o nos braços da fama.


CHICO VIVAS