quarta-feira, julho 01, 2015

TOLO DE OURO




Visto assim, é uma pepita de ouro. E, apesar da cor marcadamente terrosa, como se recém-saída do íntimo de um solo nada, na aparência, precioso, comum chão já muito batido por caminhadas aéreas em busca de divinas soluções, sem que, então, os pés sequer desconfiem do terreno em que ora pisam, refulge, transmitindo aos olhos, numa muda comunicação, em disparos sem trégua, raios que adoçam a língua, fazendo-a, mais até do que os próprios olhos, “chorar”, antecipando o que dará prazer, com os dentes cravando-se, sem do, naquela massa, fruto de um garimpo sublime, de chocolate, levando(-nos) ao céu da boca, em que há, aliás, num primeiro instante, de se grudar, como se reconhecesse ali o paraíso, não querendo, preso ao palato, livrar-se desse éden tão próximo; porém, logo vem a língua, travestida de anjo caído, para dali arrancar, em fragmentos, tal qual da cúpula do mundo deslocasse as estrelas, tudo isso para o aumento das delícias, tornando aquilo, dos lábios para dentro, um caloroso inferno em que impera, como anjo – e que importa se decaído?! – do supremo paladar.

Eis aí um castigo consentido: e quem dera que ele fosse eterno. Mas, não demora e o “mal” advirá. E ele virá quando, ainda lá atrás, no instante em que os dentes, molhados pela proximidade do desejo que com água nutre a boca, pressentindo a maciez à frente, cravarem-se, até o centro desse mundo de doce cacau, onde, talvez, encontre, como magma incandescente, um licor já ardente.

Acontece que, crente na distância que medeia a casca e o meio desse mundo, delícia de viver, os dentes não se fazem de rogados e entram com vontade. Só que o tão sonhado prazer é só casca, e nada mais, um fino revestimento de chocolate fugaz, recheado de muito, mas muito vácuo mesmo, sem sabor, com, como se num chocalho formado pelo mundo, contendo um único grão de areia, um mundinho de nada de uma pasta de avelã arredondada.

E aquele mundo de chocolate que tanto esperávamos? E aquele prazer quase sem fim, a ponto de justificar não se deixar para amanhã sua continuidade, coisa impensável, quando se fala de outros prazeres, porque os deixar para amanhã pode significar, em certos prazeres, a morte do que sustenta tanta delícia na ponta da língua?

O diabo é que o desejo nos faz, não raro, tomarmos a casca (do mundo) como sinal incontestável de uma eternidade, tal qual olhos menos experimentados em ilusões douradas aceitam joias apenas banhadas em ouro como preciosidade maciça, não enxergando diferença entre a finíssima camada amarelada e a densidade do metal ambicionado. Há quem, gostando tanto de ouro, não podendo ter à mão uma jóia verdadeira, prefira a nudez completa dos dedos, do colo, do lóbulo das orelhas, embora também haja quem, em igual situação, admita, com pragmatismo, que é melhor ter anéis (ou outras joias) banhados, como se saídos de um banho de sol, durante aqueles momentos em que ele despeja raios dourados com a generosidade de um perdulário, do que, não tendo verdadeiras jóias, em ouro, comprovadamente maciças ter os dedos desvestidos, até lançando mão de um moralismo que considera falta de pudor se apresentar assim.

No caso dos chocolates, eventualmente, na hora do desejo, em que pese sua cor nada dourada (como se houvesse se exposto ao sol mais do que o recomendado para um banho de ouro), mais preciosos do que ouro, há quem, sabendo que aquela delícia não passa mesmo de uma casca, tire prazer já no invólucro, adiando o cravar dos dentes, precavendo-se, assim, para o caso de, além da camada mais externa, não haver, realmente, chocolate – e no caso de essa jóia ser maciça, chocolate de alta densidade, se já era um prazer lamber o papel, imagina só a mordida, indo não ao centro, mas sim ao fim do mundo!

Nada disso, no entanto, nos diz, diretamente, respeito, mesmo que, legitimamente, desejemos jóias, mesmo que gostemos de ouro, mesmo que gostemos de saborear um bom chocolate, e mesmo que saibamos das delícias do “mal” (ou do mal das delícias), principalmente quando este toma um enganador banho de bondade e, cravando-lhe os dentes, nossa língua, cúmplice nessa autorizada ilusão, dá de cara com o mal, seja isso numa massa densa, seja na forma meio-aquosa de um licor de causar inveja ao recheio do mundo.



CHICO VIVAS