assar uma chuvinha é uma forma quase cariciosa, como é, em certos momentos, a sensação de uma chuvinha a cair, com uma delicadeza que parece querer dizer que não nos quer despertar, desejando mesmo, ao contrário, servir de trilha sonora, canção de ninar para nosso sono, encharcando os sonhos com doces e cálidas fantasias (ainda que, despertos, tudo seja uma secura só), de se expressar o pouco tempo que se pretende passar em determinado lugar, sugerindo que uma chuva, só porque no diminutivo, só porque não cai na forma de um devastador temporal, há de logo passar, havendo, contudo, e isso nossa experiência nos mostra, pelo menos àqueles que já pararam para observar as chuvas, chuvinhas que são quase infindáveis, mesmo que nunca ultrapassam determinado limite, jamais ameaçando, só de se a olhar, um dilúvio, embora, se continuar, indefinidamente, não importa se é chuvinha, há de (nos) inundar.
Para quem não vê chuva com regularidade, com aquela frequência que (nos) permite, caindo ela, pararmos para assistir ao seu mecanismo de queda e não aproveitar esse tempo, irregular, para dela tirar o maior proveito que se puder, pois, afinal, ela só cai de tempos em tempos, caindo diminutiva, o que exige paciência para se encher os cântaros, enchendo mais rapidamente a paciência de quem não está acostumado a sua irregularidade, para esses faz pouco sentido dizer “passar uma chuvinha”, porque seria gastar, em vão, com meras palavras (que não matam a sede de ninguém), um sentido que lhes é bem mais caro.
Para quem tem chuva, senão com uma frequência de calendário imutável, com a certeza de que, mais dia, menos dia, ela cairá, mesmo que mais-dia se alongue e menos-dia seja quase já uma miragem, pode-se dar ao luxo de se abrigar da chuvinha, não querendo se molhar, certo de que, a qualquer momento em que deseje se encharcar, haverá água disponível, já não em cântaros anacrônicos, mas caindo através de um mecanismo que imita uma chuva – e, luxo dos luxos, uma chuva que se pode regular: se se quer uma chuvinha, ei-la, caindo com ternura de pingos esparsos; se se quer um temporal, isso pode ser, imediatamente, uma ducha...de água fria (se se esperava uma chuvarada em temperatura elevada).
E só para nos darmos conta, se isso ainda for necessário, porque está tão a nossa cara, mas, sabemos, nem sempre vemos o que está demasiado a um palmo dos nossos olhos, especialmente, os que já passaram por algumas chuvas e, com o tempo, tem mais dificuldade para enxergar de perto, precisando mesmo afastar o objeto para dele tirar alguma visão mais nítida, do quanto este mundo é irregular, enquanto uns ainda cantam, apelando para crenças em que não levam fé, mas só para passar o tempo, enquanto aguardam a vontade dos deuses, para a chuva cair, uma chuvinha que seja, outros, no chuveiro, sob um temporal do qual não reclamam, até gozando a sensação de um dilúvio que se pode terminar, a qualquer instante, cantam – e como um deus, após observar sua obra recém-criada, acham que o fazem bem.
Em meus dias – e dizer isso já mostra por quantas chuvaradas eu já passei –, evitando especificações mais pontuais, jamais me tendo aventurado a experiências sonoras, ainda que beneficiado pela acústica de um banheiro ou pelo som do chuveiro a equalizar melhor meus próprios sons, emprestando-lhe uma maviosidade que não me é natural, deixei-me banhar, sem intenção de purificação física, num claro desejo de me elevar, mesmo que só uns poucos milímetros das minhas horas sempre tão chãs, por chuvas várias, procurando mesmo os pontos em que ela parecia cair diluvianamente, sempre protegido por uma arca próxima, à qual poderia recorrer, logo que me cansasse de me molhar, logo que uma voz, quase divina (por sua autoridade suprema), uma voz sem maviosidade, mas que podia também ser terna, ordenasse o fim da minha cantoria sem palavras, desse meu filme mudo, nesse meu domínio quase absoluto da cena, interrompida pelo pragmatismo de um organismo são, sob a ameaça de um monstro-resfriado que, até então musical, não fazia parte desse filme.