uero te tirar para uma dança, mesmo contra toda a prudência que recomenda que eu permaneça quietinho, no meu canto, cantarolando, baixinho, e só para mim mesmo, a canção que gostaria de contigo dançar, evitando, assim, o vexame de expor, publicamente, o endurecimento (natural, aliás, considerando-se o “tempo”) das minhas juntas, junto com o, contraditoriamente, excesso de flexibilidade que me faz cair de joelhos, sem traumas aparentes, diante do deus Desejo, sem que eu tenha manifestado qualquer vontade consciente disso, implorando, nesse caso, ser aceito como teu par.
Foi só um instante, chego a pensar num simples quase-nada, mas, sacudido num ponto indiscernível do meu espírito de bombom recheado, cedo à fantasia, talvez um tanto tardiamente, e decido-me, enfim, por uma valsa. Logo, porém, acerta-me, em cheio, como se houvesse calculado esse alvo, a face, como se o braço mal colocado de um par que valsa ao lado, a noção, clara, do espaço: já não há lugar, neste mundo, já se valsar, sequer sozinho, por menos que isso possa ter alguma graça.
Há, embora tenha de reconhecer que meu Sonho de Valsa requer um vasto salão iluminado, com velas que se multiplicam ao se deixarem capturar por espelhos, cuidadosamente posicionados, como se armadilhas eficazes para chamas mais hesitantes. Além disso, há de ser uma dança à antiga, com a dama (porque é tão à antiga, que requer dama e cavalheiro) varrendo, num giro, todos os cantos do mundo com seu longo vestido rodado – apesar de rodada essa roupa, novinha em folha, quase estalando de tanta novidade no salão –, e com par, um verdadeiro cavalheiro (à moda antiga, claro!) envergando, sem sentir nenhuma vergonha por conta disso, bem pelo contrário, mesmo que ao custo de forçar, hoje, uma postura ereta demais para nossa modernidade pouco ergométrica, reforçado tal esforço por sua idade já inclinada ao descanso fácil, um fato de gala, escuro, com cauda viril (só a experiência, que vem com o tempo, com o preço que este cobra, é capaz de emprestar virilidade a uma cauda), com botoeira preenchida com tanta naturalidade, que o botão ali posto ainda carrega consigo, recendendo a frescor matutino, um orvalho pendente, vindo de uma madrugada há pouco plantada no solo fértil de um relógio de bolso, dourado, devidamente acorrentado (os trajes de gala não dão muita liberdade de escolha), numa prisão, contudo, que se dá por cadeia de ouro (o que não a faz menos prisão, embora a torne relevante cadeia), permitindo que se veja as horas, no instante em que isso se desejar. Isso tudo sem se esquecer, porque é de praxe, nesse figurino recém-cortado por estas minhas inábeis mãos para trabalhos com tesoura, dos sapatos envernizados, a ponto de deixarem, mais elevados do que os pés que os calçam, encimados, enciumados os espelhos, com o brilho reflexo no couro bem polido.
Como se vê, é mesmo um sonho essa valsa que, só de a olhar, mesmo que assim, na fantasia só, derrete um coração – até os mais duros, imagina então o que faz com um coração de chocolate, envolto, num traje de gosto duvidoso, em papel dourado ou prateado, da cabeça aos pés; um coração que, em dias mais quentes, derretido, faz uma lambança, mas que dura, se conservado em ambiente “fresco” (talvez seja por isso que ele vive intimamente envolvido em roupa prateada ou dourada, dos pés à cabeça).
Coração à mostra, aliás, é um perigo constante, é alvo fácil até para flechas sem destino certo e que, por um direcionamento atávico a essa sua natureza de seta a cruzar os ares, dão-se por satisfeitas, se se deparam com um peito assim, como se, interpondo-se entre elas e o vazio, viesse justamente em sua direção, quando essa viagem é função das setas e não dos peitos, ainda que o coração esteja batendo só porque o tronco que então o porta, suando como se orvalhando, a qualquer hora do dia, corre ao encontro de uma flecha que lhe foi pré-determinada. Melhor, para garantir alguma segurança a esse bombom acomodado a sua caixa (torácica), é protegê-lo: para isso, uma capa.
A que está mais à mão não passa de papel celofane, com aquele indefectível forro prateado (às vezes, dourado, o que não melhora muito), roupa nada discreta nesse vermelho chamativo (de dar água na boca, por mais que queiramos esconder certos desejos), sendo ainda mais indiscreto no som que faz ao desenrolar sua cantilena, principalmente, quando, no cinema, o filme requer o máximo de silêncio. Vendo-o assim, sem abandonar a fantasia da dança, sem abrir mão do Sonho de Valsa, deixo o coração se (re)virar no peito, cuidar de seu próprio destino (e que é cair, mais cedo ou mais tarde, numa língua, em qualquer idioma), e dedico estas linhas somente à capinha desse chocolate, ao papel que torna doce, ainda que, por vezes, a outros, irritante, o amassá-lo.
Com ele, seduzido por sua cor ilusória, faço novos óculos, só para enxergar, em cor-de-rosa, os muitos tons de um mesmo Jobim. Mas, ilusão de ótica, o mundo que eu queria ver em paz me surge sangrento de um vermelho sutil, como se quisesse emprestar belezas às guerras. Dos olhos, nos quais ainda resistem velhas sequências de valsas longas, não importando os erros de continuidade que atam, num mesmo fio, o Danúbio Azul às valsas (mais) brasileiras, chego, enfim, à boca – e não há bombom à vista, ainda que a língua vasculhe, cuidadosamente, e com a intimidade que lhe é própria, a cúpula do (seu próprio) céu.
Um pente, que, aqui, aparece, ao acaso, eu o embalo no papel do sonho e, improvisada gaita, arrisco-me numa valsa, soprando-lhe esquecidos acordes de uma época que não sei como entrou na minha cabeça, que é sempre um samba-do-crioulo-doido. O som, agudo demais, quebra todos os lustres de cristal desse salão cinematográfico que, assim, apagados, dão chances, afinal, para que as velas possam brilhar, cumprindo seu papel. Com temor de me ferir nesses fragmentos de valsa, levo a mão ao peito, própria a mão, peito todo próprio, para me certificar de que, no seu (próprio) lado, no esquerdo, o bolso ainda guarda um bombom quase derretido.
Ainda, a essa altura, quero te tirar para dançar. Porém, considero ser mais prudente procurar um sonho menos difícil, porque só assim, e talvez, eu consiga te convencer a comigo – coisa de sonho! – bailar.