m dos requisitos mais comuns, e assim, possivelmente, por comprovada eficácia, para a preservação da matéria (orgânica) é que se a mantenha em lugar seco, longe, portanto, da umidade. Então, como explicar que sobrevivam, apesar de já ultrapassados pela inexorabilidade da precária condição humana, eternamente umedecidos, os olhos de Ingrid Bergman?
Esse sujeito, hão de dizer os amantes de um escurinho, referindo-se a mim, tomando-me por espectador, sem, no entanto, a devida longa metragem, comprou passagem para o Marrocos, só de ida, e lá ficou, perdido numa mítica Casablanca, anacronicamente, seduzido por intrigas internacionais (e isso é coisa de Hitchcock), porque, afinal, a senhora Bergman foi muitas outras (senhoras): e – em nome de Maria – é por ela que os sinos dobram.
Digam o que disserem, são úmidos seus olhos – e de qualquer ponto de vista, sempre serão. Não importa a secura que transmitam, nesse fingimento de profissão, lá estará, pendendo, perigosamente, num equilíbrio de mestre, que nos deixa com o coração na mão, uma lágrima, despertando em nós o desejo, para nos livrar desse incomodo cai-não-cai, que ela, de uma vez, desabe, mesmo que isso abra caminho para um rio de lágrimas, sendo que nossa capacidade de espectadores para dramas alheios é muito limitada, gozando-a, com prazer, até certo ponto, pois, passados da medida, tudo o que se quer é já uma boa gargalhada. Porém, numa demonstração de que somos mais do que um falso antagonismo entre sorriso e lágrima, desejamos, com igual ardor, que ela, ali, nos olhos, como que uma bêbada na corda bamba, apesar da iminência, segure-se, como puder, e não caia, pois, afinal, caindo, cai por terra a continuidade do espetáculo, mesmo que isso inaugure uma nova cena.
Atribui-se aos suecos, costumeiramente, pouco sabidos como somos a respeito da geografia alheia, menos ainda da alma estrangeira (e a nossa também pode ser assim, para nós próprios, numa dissociação silenciosa e imperceptível, aos nossos olhos), uma frieza de gelar as carnes mais tropicais. Talvez por isso imaginemos que uma lágrima, em olhos nórdicos, cristalize-se, antes mesmo de dar as caras. E então surge Ingrid, como se nos aparecesse em plena estação do degelo, prometendo, com águas renovadas, em que pese sua salinidade, fertilizar os solos, os sonhos – e todo sonho, ainda que se sonhe com ou em multidão, é um espetáculo solo em que experimentamos, amadores, ser protagonistas; antagonistas, extras, e, o que é mais surpreendente, tudo isso, ao mesmo tempo: eis a beleza do cinema copiada por nossos devaneios!
Pode ser que tudo isso seja só impressão. Que tais olhos, sempre molhados, só existam em meus próprios olhos, e que os mesmos, os dela, a outros, sejam só olhos; até mesmo, olhos secos demais, principalmente, para uma sueca. Mas, se o cinema é uma maneira, paga e dissimulada, de fecharmos os olhos para o que se passa a nosso lado, fecho os meus às impressões alheias, e permaneço intrigado, sem interferências internacionais, numa casa qualquer caiada de branco, com a sobrevivência de olhos assim, imersos em tão longeva umidade.
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