uando eu era garoto – e minha infância não daria um filme, já que suas brincadeiras, então minhas, eram das mais banais, e até meus dramas, de uma vulgaridade sem qualquer toque original –, mendigos tinham lá, nessa utopia chamada de passado, sua posição social, se se puder falar assim de um subdegrau, espécie de vão, um socavão, improvisado em um, aparentemente, inútil espaço da escada. De fato, eram conhecidos, um por um, e mesmo eram reconhecidos, como se um ou outro, mesmo que desejasse isso para si, não tivesse o legítimo direito e usurpar o lugar já conquistado pelos mendigos estabelecidos. E vagabundos também, embora, fora do seu próprio ambiente familiar, poucos – e mesmo assim, a distância deles – se atrevessem a fazer soar, próxima a seus ouvidos, essa vagabundagem de que todos sabiam: e como um mendigo, sempre em busca do que comer, e os vagabundos, diga-se, não o são, necessariamente, também gozava, nesse espaço muito bem demarcado, de um lugar ao sol, ainda que, como convém a sua natureza vagabunda, preferencialmente, à sombra de uma árvore generosa e, ainda melhor, perto de um rio, tão próximo, que baste apenas esticar, sem tanto esforço, o braço, para alcançar a água fresca.
Vagabundos já foram heróis, e não porque fizessem de uma incompatibilidade pessoal, ou estrutural, da própria sociedade, para com o trabalho – esse argumento, em nome da dignidade individual, para o enriquecimento de poucos – sua bandeira, anárquica, sedutora, mas tão-somente por encarnarem uma personagem lírica, livre das convenções, a ponto de poder adentrar elegantes salões com os mesmos trajes, em frangalhos, com que buscava, dia a dia, seu sustento em migalhas esparsas. Não que víssemos poesia em ser pobre, em depender da generosidade, nem sempre sincera, dos outros, às vezes, apenas uma maneira de se livrar do incômodo de mão estendida, mas, em algum lugar, nessa utopia que somos todos nós, mesmo que tenhamos endereço fixo (o que não impede a vagabundagem doméstica), alimentávamos a fantasia de só precisarmos de um único traje, simples e elegante, mutável, a depender da ocasião; de só precisarmos de alimento na hora em que a fisiologia desse seu nada discreto alarme; de não nutrirmos paixão pelo passado, nem adorar, como a um ídolo divino, um futuro sempre incerto; enfim, a fantasia de, como um pássaro qualquer, vivermos, em totalidade, a vida, seja isso muitos dias, seja coisa de dia para a noite.
Hoje, vagabundos primam por um guarda-roupa eclético, recusam o nome que lhes é tão próprio, chamando a isso de incorreção política, preferindo ser tratado por um eufemismo, e até mesmo por, simplesmente, “eufemismo”, que pouca diferença faz, já que não são tantos, mesmo entre os não-vagabundos, que sabem o que isso é, havendo os que acham pura vagabundagem isso de buscar nomes diferentes para uma coisa já tão conhecida. Heróis, propriamente, não são, mas perseguem a idolatria para, depois, fugirem, na dela, mas da perseguição dos que passaram a idolatrá-lo, numa insincera corrida, só para potencializar a perseguição, desejando, ardentemente, que, no meio do caminho, a multidão aumente, pouco importando que esse exército, assim formado, seja composto de vagabundos em geral.
Cartolas caíram de moda (e no seu rastro, quase também rosas que não falam, mundos que são moinhos), bengalas se tornaram anacrônicas, salvo quando o corpo, cansado de vagabundear, ou por não o ter feito no tempo certo, agora, requer essa ajuda sobressalente. Aparecer sempre com o mesmo fato, é como não ter outras histórias para contar, como, por exemplo, alimentar suas história com a quantidade de fatos que abriga em seu guarda-roupa. Andares podem ser aprendidos, dissimulando-se um jogo de pernas engraçado, espaçado, recurvo, por um caminhar reto, coluna ereta, olhos sempre para adiante, e um aspecto de que nada ao seu redor lhe diz respeito.
Mesmo assim, pode haver alguma poesia, algo concreta (por mais anacrônica que essa poesia possa ter ficado) nessa nova maneira de ser vagabundo. Mas, aos meus olhos, sempre mais encantados com a mudez do que com o cinema tagarelado, vida feliz é sair por aí, garoto, quebrando vidraças (coisa que nunca fiz), não tanto por um prazer sonoro nesse estilhaçamento, e mais para alimentar um negócio que vem no rastro: um vagabundo que, em dia de trabalho, oferece, prestimoso e pontual, seu serviço de vidraceiro.
E quem dera um Carlitos para t(r)ocar meu telhado de vidro!
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