Saber o que os sonhos querem dizer – interpretá-los, quero dizer – é o sonho de muita gente séria, do tipo pouco sonhador(a), que só empenha seu tempo, e mesmo suas esperanças (não vendo nisso um sonho vão) em projetos de real importância, crendo, como crê(em), que, apesar de haver um “mundo dos sonhos”, há pouco espaço para fantasias, necessário que é se ter os pés no chão, cabeça no lugar (e este não é nas nuvens) para se levar a cabo tarefa como essa, a de “ler” os sonhos, com total domínio de sua semântica; e de sua sintaxe também, haja vista que, por mais que se multipliquem, os sonhos não são uma simples adição em que a ordem não altera jamais a interpretação, sendo mesmo a forma com que se encadeiam (no espaço mais livre que o homem conhece, mesmo que, para alguns, os sonhos estejam irremediavelmente atados a necessidades eternamente insatisfeitas) o que lhes dá (real?) significado.
Mas, como sonhar, dizem, é de graça – e, pelo jeito, dizer o que se quer também, se não houver um correspondente cala-boca em tempo real -, apesar de não os levar tão a sério, querem interpretar os sonhos aqueles que, sonhadores (do ponto de vista dos outros), esperam encontrar aí a solução para suas aflições, seja como uma revelação direta (da mera fofoca onírica até um cochicho divino, se a existência disso não passar de simples boato) ou mesmo, o que pode lhes surgir como garantia de problema prestes a ser solucionado, em esotérica explicação, desde que já se seja iniciado em tais mistérios.
Associar os sonhos a animais é quase tão antigo quanto se dizer, com expressão já anacrônica, que essa associação “é o bicho”. Os sonhos talvez sejam (e eu aqui querendo interpretá-los: não é mesmo para se me levar a sério!) apenas um jogo, eventualmente, tão simples como um infantil jogo da memória, com cartas desenhadas à semelhança da bicharada, e em que a diversão toda é se encontrar, como numa arca mítica, os respectivos pares, nem sempre de gêneros diferentes, quanto, ainda jogo, um cujas regras, irrequietas, não se mantêm no lugar, fixas como recomendam certas regras do jogo, mas se alterando a cada sonho, como se assim se quisesse, num jogo de gato-e-rato, brincar conosco, pois, enquanto nos pomos a interpretar esses sonhos de acordo com uma dada regra, os outros, na sequência, já não a obedecem.
Tão pouco razoável este arrazoado pode parecer que, com altivez fora de hora, a suspeita (sobre mim) se levanta, pedindo a palavra: não terá passado tudo isto de mais um sonho, de um sonhador que não tem sua cabeça no lugar, tendo-a, como um pesadelo “significativo”, no corpo de outro, bicho?!
CHICO VIVAS
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