domingo, junho 01, 2014

REFORMA ORTOGRÁFICA PARA ACENTUAR O DESEJO








esejo de muitos, para não dizer, pecando pela generalização excessiva, desejo de todos, o que, necessariamente, incluir-me-ia, estar bem assentado na vida pode não passar de somente mais uma posição, confortável, para uma exigência fisiológica passageira.

Mas, não desconsideremos, com aparente desprezo, tapando o nariz ao simples soar da palavra escatologia, os assentos passageiros, e nem falo das raras poltronas (se merece esse nome pomposo) dos ônibus lotados, dessa lotação de homens cheios de desejos insatisfeitos e que, pela própria lotação do ônibus, obrigados a um contato anônimo, veem, por mais que tentem disfarçar, seu desejo avolumar-se, às vezes, pelo tempo que já está ali, quase sem poder sair, já não havendo como mais alguém entrar (embora entre), convivendo tal desejo, próprio de sua fisiologia humana, visceralmente primário, com uma outra necessidade, igualmente fisiológica, num aperto de dar dó.

Na hora do aperto, que não costuma, salvo nos que se programam como um reloginho, às favas o assento, que isso é o que menos importa, não se perdendo tempo em se questionar se há, ali, um verdadeiro trono, se o assento é importado, se os acentos estão corretamente dispostos, desde que haja papel à mão, até já escrito, aparentemente, por tantas palavras alheias, sem uso, mas com utilidade garantida.

Na hora do desejo, que não marca hora, embora, sabendo-se quando passam os ônibus mais lotados, possa-se preferir justamente essas horas, agem igualmente – se houver diferença, são sutilezas da civilização – os bem-assentados (na vida) e os que ainda buscam por um assento digno, tanto os que já sabem acentuar com acerto, mesmo quando há dúvidas canônicas, quanto os que acentuam, erroneamente, o acento, dispensando-o, no entanto, do errôneo, por considerar isso um acerto.

Na hora – se houver, nessa nossa vida apressada, tanto tempo assim – em que se conjugam, a nossa própria revelia, num acerto entre eles, tácito e sádico (creio ter acertado nos acentos), necessidade fisiológica, a ponto de o aperto desprezar o assento, e desejo, atendendo ao mesmo império da fisiologia (ainda que pareça estar em nossa mão o acerto desse relógio), e, ainda por cima, encontra-se preso num trânsito, entalado num ônibus lotado, com um desejo crescente, que não se pode se satisfazer a contento, e uma necessidade cada vez maior, fingindo-se, para si mesmo, numa cara de contente, a insatisfação em progresso, um trono de nada serve, mesmo que com seu assento aveludado, se for uma promessa para o futuro, quando se conseguir escapar dessa lotação, sendo cuspido por esse ônibus, expulso pelos passageiros mais controlados, mesmo que tal controle não tenha chegado a ponto de não taparem seu nariz para uma conseqüência previsível.

Porém, sejamos realistas – se é que essa imagem de ônibus cheio, lotação esgotada, desejos insatisfeitos e necessidades represadas já não são um exercício, por mais fantasiosas que tenham sido as palavras, de realidade. Nem todos usam ônibus, nem todos mantêm insatisfeitos seus desejos (há até os que, para evitarem a insatisfação inevitável, prescindem do contato físico, mesmo que numa lotação já sem espaço), e há os que, sobre-humanamente, contêm, sabe Deus em que reservatórios, cheios de reversas para manifestarem em público suas necessidades mais fisiológicas, o primarismo de sua condição animal em limites estritos, com mão de ferro, ao custo de um volume que passa longe do desejo, ainda que, no abdômen, fique ali nas imediações.












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