Se as orelhas dos livros não me dão ouvidos, se os olhos
d’águas, ainda uns brotos, não piscam para mim, se um nariz-de-cera se não se
derrete todo, diante dói meu cheiro, se, quanto mais ajo com tato, menos
arrepiado fico, se dou à língua diversas possibilidades, e nem assim me chegam
as devidas respostas, que “sentido” há em continuar vivendo assim?!
Arrancar a orelha,
num gesto trágico, seria não mais do que copiar o que os livros dizem de um
certo pintor, algo louco, mas também muito “lúcido”, haja vista a quantidade de
luz que faz com que seus quadros, se não possam ser visto mesmo no escuro
total, esclareçam, e muito, a respeito, partindo do próprio autor, do homem,
ainda que seu “motivo artístico” não seja um auto-retrato, mas uma natureza
vivíssima.
Cegar-me, culpado ou,
inocentemente, só para posar de mais trágico ainda, não me faria enxergar mais,
nem mesmo enxergar os vãos que os olhos (vivos) não alcançam, por preguiça de
se aventurarem nesses (des)caminhos, deixando-me apenas mais vazio, com órbitas
sobressalentes, carentes de um mundo que se foi com os olhos arrancados – e nem
acredito que essa cena, até se for transposta da privacidade discreta para a
publicidade calculada, possa despertar, a essa altura do espetáculo, alguma
água em outros olhos; e se o fizer, de que me valerá, agora, que já não posso
mesmo ver?!
Confesso que me
derreto todo por um nariz perfeito, ou um que fique, ali, bem próximo da
perfeição, tal qual um que tenha sido rigorosamente trabalhado por um artista
dos mais realistas, mas cuja realidade é o convívio não com narizes possíveis,
e sim com os mais perfeitos, exageros à parte. E se me desmancho todo, como
cera derretida, é por não sentir em mim mesmo a solidez necessária para, ainda
que imperfeitamente, aspirar perfumes diversos.
Se desisto, menos por
convicção, e mais por falta de opção, de agir com o devido tato, passando ao
largo das sutilezas, e indo, diretamente, ao áspero contato, certo de que,
assim, os arrepios virão em série, incontroláveis, em gestos bruscos que já se
tornaram muito naturais, a ponto de me arrepiar com a insensibilidade corrente
para se separar o toque que se dá de todos os outros, os que são dados a toque
de caixa – no entanto, é só um, um arrepio apenas, fugaz, nada mais.
Quando à língua,
variações do mesmo idioma, que ofereço, isso causa um desentendimento geral: se
a dou, mostrando-a, sem segurar uma nostalgia infantil, presa a língua ainda à
minha boca, dizem-me um verdadeiro criançola; se me disponho a oferecê-la em
silêncio, por isso, dizem de mim um velho; se escolho passar a língua nos
lábios (nos meus próprios), como se assim traduzisse tudo o que tenho a dizer
em palavras – baixas e altas, sincronizadas com o movimento labial –, dizem que
sou um marionete.
É preciso, para
querer continuar vivendo, encontro, e logo, um “novo” sentido para a vida: de
imediato, lembro-me do “sexto”, mesmo ao custo de vestir em mim mesmo uma
fantasia mais comumente reconhecível num talhe feminino. Mas, olhando bem
(afinal, não arranquei meus olhos) o que se faz com esse suposto apêndice
extrassensorial, atiro tal opção ao cesto, preferindo a morte de todos os
sentido a parecer um charlatão, mesmo que as minhas visões sejam verdadeiras,
pois, por comparação, se elas se assemelham àquelas dos que ludibriam os
sentidos dos que, sem perceberem, buscam um (sentido), como redenção (para sua
vida), serie falto a todos os olhos, não me darão ouvidos, hão-de torcer o
nariz à minha passagem e, sem nenhum tato, quererão, incomodados com minhas
(supostas) verdades, cassar-me a palavra, cortando-me a língua.
A ser um profeta
assim, prefiro permanecer sem sentido(s), mas, de pé, enquanto, ao menos, as
mãos puderem suportar (como se elas fossem, na verdade, minhas costas) a tarefa
de dar algum significado a essa vida limitada pelo que se sente, como se só
isso é que existisse, e desejando-se, ardentemente, que haja um outro sentido
para ela.
Isto aqui bem poderia
ser uma orelha, porém, sem o livro; olhos, porém, dos quais não brota água; nariz,
porém, um que não se comove com os resfriados; pele, porém, comprimento tátil
que não se toca dos seus próprios limites; língua, porém, uma que só fala em
sentidos, em busca de um, recolhendo-se, enfim, ao não os encontrar.
CHICO VIVAS
Nenhum comentário:
Postar um comentário