segunda-feira, dezembro 01, 2008

SEM SEGREDOS








á dizia um personagem de um memorável filme (trago-o de memória, mas não o digo, nomeando-o, porque se este negócio aqui já começa com citação, há-de continuar um arremedo de enciclopédia de bolso formada por fascículos avulsos de periodicidade semanal) que, quando a lenda é mais forte que o fato, deve-se, sem maiores conflitos éticos, imprimir a lenda: e quem o diz é um editor de jornal, explicada assim essa sua “impressão”.

Como fato, de verdade, aqui, não há, não havendo como provar que há, ficando sua credibilidade (e, no seu rastro, a minha também) empenhada à fé, vamos logo, de uma vez, à lenda, sem nos importarmos com o fato(?) de ela ser forte ou fraca. A lenda é hebraica e fala de um anjo-sentinela colocado diante da porta do céu – uma boa colocação, até mesmo para anjos que, salvo o(s) mais caidinho(s), estão, por natureza, sempre “por cima” –, ali postados para ouvir as preces, os rogos, as orações humanas, conduzindo-as a Deus.

De fato, o que há de encantador nessa narrativa, e que a torna digna das melhores impressões, é que, ao saírem da boca dos homens, ou, simplesmente, quando caladas fundo, do seu coração, tais pedidos, esperança de salvação, seja para o inexorável da vida, seja para aqueles acidentes cotidianos, plenamente reversíveis em suas conseqüências, apesar da aparência imediata de serem fatais, exigindo, diante da fraqueza humana, pressa na cessação da dor, e cujo remédio custa apenas(?) um pouco de paciência, de algum estoicismo para suportar um dor a que já não nos acostumamos, à custa de tantos remédios disponíveis, até para males inexistentes (ainda), sendo, talvez, suficiente, para tal alívio, uma noite bem-dormida, chegam – os tais pedidos, orações, rogos, preces –, afinal, aos ouvidos do Senhor, ali entram e se transformam em...flores.

Só mesmo uma boa lenda é capaz de fazer um ramalhete oloroso, multicolorido das nossas súplicas chorosas, às vezes, insípidas, de tão repetitivas que são; inodoras, por tanto que aguardamos, sem muita paciência, a graça, sempre de nariz em pé, com a desculpa de estarmos com olhos para Ele voltados, calcando, assim, a humildade sob os próprios pés, como se não fôssemos nós os suplicantes (seja Ele uma lenda ou um fato sobre-humano), mas justamente (como Ele não pode deixar de ser) Deus o que (nos) roga, transformado, assim, em nosso dependente, não podendo “viver”, apesar de uma eternidade que Lhe é atávica.

Oh! anjo, guardai os meus rogos para que, ao chegarem ao seu divino destino, entrando-Lhe pelos ouvidos adentro, caminhando pelos labirintos do Senhor, caiam ali, suavemente, como um doce vendaval de pétalas que sacrificam a integridade da flor (tomara que isso não signifique cortes em meus pedidos, por se considerar que minhas orações ficaram sem sentido) em nome dessa metáfora, porque não se conhece, de fato, um vendaval de flores dispersas, sabendo-se, no máximo, a depender da força do vento, de um espetáculo de pétalas indo pelos ares.

Ouvi bem, ó anjo, o que vos digo, o que peço, anotando meu pedido com a atenção de um florista cuidadoso ao registrar uma encomenda e, sendo, ao mesmo tempo, o próprio mensageiro, o entregador do ramalhete, fazei com que esse buquê de súplicas caia em mãos certas, e ainda cuidai para que não fiquem, tantos rogos, por aí, mas que entrem pelos ouvidos de Deus: sei que, daí por diante, já é com Ele, tendo vós, ó anjo, de voltar para aquela porta, à soleira da qual não cessam os pedidos, acumulando-se em montes de necessidades humanas, mesmo que algumas travestidas de expectativas ascéticas, e, curiosamente, pedidos, preferencialmente, “sem conta”, sem tempo, vós, apesar de vossa eternidade, para “pegardes” um cineminha, para assistir a um filme cheio de estrelas – o que, para vós, não deve ser nenhuma novidade, conhecendo-as, pela proximidade, todas elas, até chamando-as pelo nome, coisa que nós, humanos, não sabemos fazer, nomeando, quando muito, as estrelas mais famosas, como a Estrela d’Alva e as do Cruzeiro do Sul, com a eterna cruz que carregam, exceto, claro, os homens que, principalmente, no escuro, dedicam-se, abdicando do cineminha, ao estudo do que se passa no céu, jamais, porém, seus olhos tão científicos alcançando-vos, por mais potentes que sejam suas lentes de aproximação, ó sentinela celestial, guardião da entrada do paraíso, ouvinte atento (mais do que no ouvinte, minha esperança reside em vossa atenção) das nossas orações.

As minhas, apesar de abundarem aqui, são muito caladas, assim, em meu peito, o que, não raro, faz com que sejam confundidas com uma distância voluntária, e exigem, talvez por serem tão tácitas, muita atenção para que, como um perdoável fofoqueiro, possais, ó anjo-só-ouvidos, cochichá-las ao pé-do-ouvido de Deus, semeando, desse modo, uma futura flor, ainda que essa súplica se resuma ao desejo de ostentar uma coroa ou de ter, de tiaras que portamos à nossa própria revelia, subtraído, ao menos, um espinho.

E para o caso, fato bastante possível, mais do que provável até, de esta lenda, por não ser repetida, já andar um tanto surda, descerro meus lábios, ainda que continue confiando no valor do (meu) silêncio, e, com o auxílio de uma língua que mais me domina do que eu a ela, tentando riscar, uma a uma, a lista inteira de dúvidas, a ponto de não restar um só sequer, e...quase te desejo (e, agora, já não me refiro ao anjo em segunda pessoa do plural, mas a ti mesmo, meu paciente leitor – que até podes ser um...anjo), a meu bel-prazer, o que julgo que é o teu desejo.

Como, assim, de uma só vez, planto, genericamente, uma só flor no ouvido de Deus, deixo que parta de ti o envio, a Ele, de tuas súplicas, dos teus pedidos, dos teus rogos, em orações curtas ou tão alongadas quanto as minhas, pois, em lugar de uma, por mais sincera flor que seja, aqueles subidos ouvidos tornar-se-ão um jardim. Mas que, em meio a tantas, possas sempre identificar a flor que é particularmente tua.

Amém!