domingo, novembro 01, 2015

IMPERATIVOS DO CORAÇÃO



“Todo mundo tem vinte e quatro horas por dia, nem mais e, raramente, menos do que isso, e qualquer maneira de passar o tempo me parece boa. Depende, claro, do temperamento de cada um”. (DASHIELL HAMMET)


Acalmai-vos, corações assustadiços, pois lhes garanto que não há, aqui, nenhum crime, a não ser o, aparentemente, indolor de matar o tempo, assassinato que, aliás, mesmo a espíritos mais retos, causa um grande prazer, desde que não sejam assassinatos em série, já que isso configuraria um desvio desse mesmo espírito, desabando, então, no abismo da preguiça, ainda que saibamos todos que há, sim, abismos deliciosos, daqueles em que se aproveitam todos os instantes da queda. Crime não há, mesmo que surjam suspeitas imediatas, haja vista o autor da frase em epígrafe.

Também, e isso é, talvez, mais importante para esses mesmos corações que se sobressaltam com tanta facilidade, não há ação, enquanto, pelo menos, não se considerar como tal a simples sucessão de momentos, pois, com ação, quero me referir, especialmente, àquelas de tirar o fôlego – as que, justamente, mais assustam os corações.

Quanto a mistérios, e isso já se vê pela sequência de declarações acerca do que não há, aqui, tranquilizai-vos, corações, ó músculo pulsante, todo cheio de si, a ponto de estufar o peito, em que pode haver um ou outro dó, que não haverá enigmas que, de uma hora para outra, exatamente na hora em que nada parece acontecer, deem as caras.

Como esse tom negativista, dizendo tudo o que não há, iria longe, caso me decidisse a isso continuar fazendo, sejamos mais positivos, alimentando, com polegares para o alto, os corações simples, e mesmo aqueles de gosto mais sofisticado, quando em público, embora seja um assunto marcadamente privado o que vai no peito de cada um, mas que, na privacidade do próprio tronco, lambuzam-se de tolices com forte apelo terapêutico – e se dá a ilusão “real” de que é a mais pura verdade, que importa, se é ou não um placebo?!

E uma das maneiras de se fazer isso pode ser dizer que o tempo que se perde, perde-se-o para se encontrar, pela experiência, a sabedoria mais à frente; e, às vezes, muito lá na frente. Ah! falar assim é como passar diante dos corações simples com apetitosas bandejas, capazes de encher os olhos; e para darmos o mesmo banquete a outros corações, algo esnobes, algo covardes ao não admitirem o forte apelo do senso-comum, enfeitemos a coisa, reforcemos o placebo com a embalagem da poesia, esse mais alto ponto a que pode chegar um espírito, e passemos diante deles uma travessa – não! é melhor que a chamemos de salva, preferencialmente, de prata. Dentro dela, recendendo a nobres palavras, mais pelo resultado da mistura do que, propriamente, pela lista de ingredientes, quando tomados individualmente, T.S.Elliot: “Só por meio do tempo é que se conquista o tempo”.

Fartai-vos, corações! Eu, de cá, fico a pensar, deixando a impressão, aos simples, de que sou esnobe de coração, e aos aristocratas, de que não passo de um reles, o quão autófago (serei esnobe?) é o tempo, alimentando-se de si mesmo, comendo-se e, em conseqüência, levando avante sua progressão: e vê que contradição, se comparado à humana condição, já que no nosso mecanismo de adição e subtração, se devoramos algo, diminuímo-lo, se nos devoramos (e a razão disso podem ser motivos do coração), diminuimo-nos em nossa humanidade, ainda que só ajamos assim justamente por causa dessa mesma condição.

Coração, seja qual for a tua casta, não te consumas com tais especulações, porque o tempo...ah! este é um comilão que se fortalece, a cada dia, desejando sempre mais, enquanto tu, coração, se arderes (que entrar em combustão é uma forma de te consumires), que seja por uma febre que queima, mas que sabe também, já morna, acalentar, sem que essa fogueira incendeie o peito, chegando a fazê-lo em cinzas, podendo os olhos ficarem vermelhos, ainda que sejam cinza.

Contai, corações – porque, afinal, salva algumas particularidades, somos todos iguais – com todas as vinte e quatro horas rituais, mesmo que, ardendo de desejo, ora elas vos pareçam se dilatar numa experiência, aqui, de eternidade que não se sabe, ao certo, se há em algum outro lugar, ora passam tão de repente, que logo se sente saudade da fogueira que tomava lugar no peito.

E mesmo, corações, quando vos tocardes, sentindo-vos um tanto quanto mornos, como naquelas horas em que apenas auscultar o peito e medir a temperatura é só um passatempo, não vos desespereis, pois estais vivos, mesmo que sem aquela ação que os mais desesperados julgam ser o verdadeiro nome da vida.

Aqui, por exemplo, ainda que eu (nem meu coração) sirva de modelo, não houve ação, nenhum mistério, e quanto a crimes, só o já anunciado de início, sem mais surpresas. No entanto – porque foste tu que me trouxeste  e não o contrário, ó coração ao qual me dirijo pela lembrança –, vivi, em linhas (gerais), um tempo infinito que, aliás, não se acaba com este ponto final. ...

CHICO VIVAS