“Todo mundo tem vinte e quatro horas por dia, nem mais e, raramente, menos do que isso, e qualquer maneira de passar o tempo me parece boa. Depende, claro, do temperamento de cada um”. (DASHIELL HAMMET)
Acalmai-vos, corações assustadiços, pois lhes garanto que
não há, aqui, nenhum crime, a não ser o, aparentemente, indolor de matar o
tempo, assassinato que, aliás, mesmo a espíritos mais retos, causa um grande
prazer, desde que não sejam assassinatos em série, já que isso configuraria um
desvio desse mesmo espírito, desabando, então, no abismo da preguiça, ainda que
saibamos todos que há, sim, abismos deliciosos, daqueles em que se aproveitam
todos os instantes da queda. Crime não há, mesmo que surjam suspeitas
imediatas, haja vista o autor da frase em epígrafe.
Também, e isso é, talvez, mais importante para esses
mesmos corações que se sobressaltam com tanta facilidade, não há ação,
enquanto, pelo menos, não se considerar como tal a simples sucessão de
momentos, pois, com ação, quero me referir, especialmente, àquelas de tirar o
fôlego – as que, justamente, mais assustam os corações.
Quanto a mistérios, e isso já se vê pela sequência de
declarações acerca do que não há, aqui, tranquilizai-vos, corações, ó músculo
pulsante, todo cheio de si, a ponto de estufar o peito, em que pode haver um ou
outro dó, que não haverá enigmas que, de uma hora para outra, exatamente na
hora em que nada parece acontecer, deem as caras.
Como esse tom negativista, dizendo tudo o que não há, iria
longe, caso me decidisse a isso continuar fazendo, sejamos mais positivos,
alimentando, com polegares para o alto, os corações simples, e mesmo aqueles de
gosto mais sofisticado, quando em público, embora seja um assunto marcadamente
privado o que vai no peito de cada um, mas que, na privacidade do próprio
tronco, lambuzam-se de tolices com forte apelo terapêutico – e se dá a ilusão
“real” de que é a mais pura verdade, que importa, se é ou não um placebo?!
E uma das maneiras de se fazer isso pode ser dizer que o
tempo que se perde, perde-se-o para se encontrar, pela experiência, a sabedoria
mais à frente; e, às vezes, muito lá na frente. Ah! falar assim é como passar
diante dos corações simples com apetitosas bandejas, capazes de encher os
olhos; e para darmos o mesmo banquete a outros corações, algo esnobes, algo
covardes ao não admitirem o forte apelo do senso-comum, enfeitemos a coisa,
reforcemos o placebo com a embalagem da poesia, esse mais alto ponto a que pode
chegar um espírito, e passemos diante deles uma travessa – não! é melhor que a
chamemos de salva, preferencialmente, de prata. Dentro dela, recendendo a
nobres palavras, mais pelo resultado da mistura do que, propriamente, pela
lista de ingredientes, quando tomados individualmente, T.S.Elliot: “Só por meio
do tempo é que se conquista o tempo”.
Fartai-vos, corações! Eu, de cá, fico a pensar, deixando a
impressão, aos simples, de que sou esnobe de coração, e aos aristocratas, de
que não passo de um reles, o quão autófago (serei esnobe?) é o tempo,
alimentando-se de si mesmo, comendo-se e, em conseqüência, levando avante sua
progressão: e vê que contradição, se comparado à humana condição, já que no
nosso mecanismo de adição e subtração, se devoramos algo, diminuímo-lo, se nos
devoramos (e a razão disso podem ser motivos do coração), diminuimo-nos em
nossa humanidade, ainda que só ajamos assim justamente por causa dessa mesma
condição.
Coração, seja qual for a tua casta, não te consumas com
tais especulações, porque o tempo...ah! este é um comilão que se fortalece, a
cada dia, desejando sempre mais, enquanto tu, coração, se arderes (que entrar
em combustão é uma forma de te consumires), que seja por uma febre que queima,
mas que sabe também, já morna, acalentar, sem que essa fogueira incendeie o
peito, chegando a fazê-lo em cinzas, podendo os olhos ficarem vermelhos, ainda
que sejam cinza.
Contai, corações – porque, afinal, salva algumas
particularidades, somos todos iguais – com todas as vinte e quatro horas
rituais, mesmo que, ardendo de desejo, ora elas vos pareçam se dilatar numa
experiência, aqui, de eternidade que não se sabe, ao certo, se há em algum
outro lugar, ora passam tão de repente, que logo se sente saudade da fogueira
que tomava lugar no peito.
E mesmo, corações, quando vos tocardes, sentindo-vos um
tanto quanto mornos, como naquelas horas em que apenas auscultar o peito e
medir a temperatura é só um passatempo, não vos desespereis, pois estais vivos,
mesmo que sem aquela ação que os mais desesperados julgam ser o verdadeiro nome
da vida.
Aqui, por exemplo, ainda que eu (nem meu coração) sirva de
modelo, não houve ação, nenhum mistério, e quanto a crimes, só o já anunciado
de início, sem mais surpresas. No entanto – porque foste tu que me
trouxeste e não o contrário, ó coração
ao qual me dirijo pela lembrança –, vivi, em linhas (gerais), um tempo infinito
que, aliás, não se acaba com este ponto final. ...
CHICO VIVAS
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