sábado, outubro 11, 2008

QUIDES



Falar disso é uma maneira, menos incômoda, de trazer o assunto à (minha) cabeça; mas se, ao contrário da expectativa que mantenho, começar a me sentir desconfortável nessa situação - e o sinal pode ser uma coceira repentina -, paro, na hora, e nunca mais volto a pensar em...piolhos.

Houve tempo (que ainda resiste em certas lembranças: diretamente, pela lembrança de uma experiência vivida, mesmo que, então, não se fosse seu protagonista, um herói covardemente atacado por um bando de minúsculos, mas asquerosos, inimigos, ou através de lembranças indiretas, podendo ser estas apenas um testemunhar, como simples espectador, sabe-se lá se se identificando com as agruras do herói ou com uma experiência já bastante diluída para que ainda se a tenha como própria) em que se "catava" piolhos na cabeça das crianças, e nesse mesmo tempo, imagina-se que, fora eles, elas, as crianças, não tinham mesmo nada "ali", o que, por extensão, nos leva à moralista conclusão de que nada de mal existe na cabeça de uma criança; e as teorias vigentes de que a coisa, para o bem ou para o mal de todos nós (que, afinal, fomos uma delas), não é bem assim, que toda criança, além dos piolhos, já naquela época, tinha (n)o que pensar, tanto que davam no que pensar, e ainda que, mesmo sem moralizar o ato, houvesse os piolhos, um mal que as atacava, havia, por outro lado, tão "à mão", quem os catasse, com bravura materna de quem, para salvar o filho, não descansa enquanto não esmagar cada inimigo, um a um, lutando até o fim, com unhas, sobretudo com elas, e dentes rangendo num misto de raiva pelos piolhos escapados e prazer pelos que são subtraídos sob o peso de sua unha.

E a vitória seja dada às mães! E louvadas sejam suas mãos! Relíquias sejam considerados seus dedos milagrosos! E não duvido de que uma lasca dessas suas unhas, sujas desse trabalho de morte, ainda faça o milagre de que um filho extraviado, tendo deixado tanta coisa lhe passar pela cabeça, pela lembrança rediviva, talvez reanimado por uma coceira repentina na cabeça, experimente, ao longe, onde estiver, essa volta ao lar - e se o "motivo" não parece dos mais elevados, os resultados desse regresso o legitimam, até porque é muita falta de originalidade, com tantas lembranças na (nossa) cabeça, recorrer sempre a uma "madeleine" (coisa da cabeça de Proust: mas isso já é uma outra leitura).

Se era assim, hoje, como piolhos, crianças que foram, há os que, "tachados" de maus, de cara, sem que se ocupe com o que lhes vai pela cabeça (embora seja um recurso demasiado fácil, e nem sempre justificável, buscar no "mau" de cada homem uma criança vilipendiada, seja por um ataque indesejável de piolhos, seja, com sua própria defesa, pela falta de mão de mãe sobre sua cabeça: nunca se fala do poder da unção paterna), catam crianças.

E catam-nas pelos precipícios que não faltam, pois é mesmo da natureza de toda criança sentir-se atraída por essas visões perigosamente sedutoras; sejam tais precipícios naturalmente desenhados, um relevo que ali está, perigoso, sedutor, talvez, originalmente, apenas uma notação topogeológica num cume de um nada, sem maior "moralidade" e que, com o desbastar provocado pelo tempo, ficou assim, assemelhando-se a um abismo.

Seria precipitado - e já não somos crianças para abusar disso -, chamando-os, esses catadores de crianças, de piolhos da sociedade, querermos, atirando no abismo voraz todo o conhecimento que muito custou a tantas cabeças, a custa de muitas coceiras, retóricas ou não, esmagá-los, um a um (porque se multiplica, assim, o deleite com esse espetáculo), com as mães na linha-de-frente, já que elas sempre fazem boa figura, mesmo que jamais se tenham (pre)ocupado com o que se passava na cabeça de suas crianças, mal sabendo a origem das coceiras próprias.

Não! não nos esqueçamos, deixados de lado outrora, ocupados com inimigos maiores para darmos atenção a simples piolhos, ( "raspem a cabeça desse moleque, e pronto!"), dos pais, dos homens nessa história toda.

Declarada a guerra, com as mães levando os estandartes, que elas dizem ter tecido, ainda que não saibam segurar uma agulha (e isso não é uma alfinetada misógina), com o lema "salvem nossas crianças", "morte aos piolhos (da sociedade)", seguem-se, seguindo-as, os pais, os homens honrados que, aliás, estão ali justamente para emprestar a essa guerra sua honradez, da qual se crêem fiéis e exclusivos depositários: quantos já se aproximaram de precipícios? quantos, vendo a coceira na cabeça de uma criança, ocuparam-se dela? quantos, simplesmente, cortaram-lhes a cabeça? quantos sabem o que se passa na sua própria? quantos não se "precipitarão"?

A morte, pura e simples, dos piolhos acabará com o mal? Isso não sei: nem sou pai! E, mesmo homem, não conheço todos os meus precipícios - embora muitos nem me passem pela cabeça.



quarta-feira, outubro 01, 2008

O QUE OS OLHOS NÃO VÊEM...




As bochechas, recheadas com chumaços de algodão, de Dom Corleone nunca me enterneceram: seu olhar, sim – mas, sentimental, me enterneceria com qualquer avô, por mais descarnado, por mais que suas faces não apresentem maçãs (a fruta, a essa altura, é outra, guardada, há tanto, como se sabe, na devida gaveta), ainda que se mostre, essa mesma face, tão chupada. De Brando, lembro-me de o ver desenhado, sob a justa camiseta, inaugurando uma moda, como se fosse eu um passante habitual daquelas ruas, sempre tomando o mesmo bonde, chamando assim ao meu desejo de, entrando numa máquina do tempo, viajar, sem sair do lugar, o que, de resto, já faço na poltrona que me cabe.

Aquele Kovalski, “sarado”, em meio às “doenças” de Blanche, da sensatez de (sua) Stella, rodeado por uma América tão distante dos nossos sonhos (dos que, entre nós, um dia, sonhou com ela), tão próxima do mundo que mais conhecemos (porque, antecipando-me, sabemos bem a “Cor do Dinheiro”), é a própria imagem da juventude, espécie de atualização, a sua época, do ideal cultivado nos ginásios gregos, para deleite de filósofos que encobriam, sem nenhum bonde à vista, seu desejo, semelhante ao de qualquer homem ignorante, inclusive (caro Sócrates) de si mesmo.

De Paul Newman, à parte seus músculos, ficou-me a face – e nela, como se, soberanos, usurpando a atração de quaisquer outros traços ali, os olhos, imperando, solenes, carregados de uma humanidade de fantasia, porém, enxergando, como olhos de qualquer outra cor, as misérias do mundo. Deste, a carência de escândalos, só os havendo na medida necessária para, dissipadas algumas fantasias de celulóide, manter vivo o mito, manter mítica a vida. Daquele (outro), como esquecer seus dissabores, suas tragédias pessoais, seus refúgios tropicais, suas mulheres exóticas, e, sobretudo, o que nos faz chegar perigosamente perto do (nosso) próprio drama de existir, a transformação do corpo, no rastro do tempo, tornando, hoje, irreconhecível o belo de ontem.

Adeus dá-se a um sonho, a uma fantasia, como se, dissipando-se, seja porque a vigília cobra esse alto preço, seja porque, vigilantes, temos de trocar de máscara, soubéssemos que, findo um, finda outra, não mais os (re)encontraremos. À realidade damos um até breve, já que, a nossa própria revelia, sabemos que, mais dia, menos dia, haveremos de a encontrar, novamente.

Adeus, Paul! Até breve (como é a vida, porque longa só mesmo a arte, já dizia o grego Hipócrates), Brando!