sábado, maio 03, 2014

PALAVRAS CORRIDAS



Quem “tem tempo” suficiente para isso e não é, exclusivamente, de um tempo em que a tecnologia digital se entrega a nós, cobrando seu preço, com a promessa de não falhar (quando falha, ou tudo é muito rápido, a mais de 24 quadros por segundo, ou sai mais em conta trocá-la), talvez se recorde de alguma experiência “às escuras”: enquanto a vida corria solta na tela, com suficiente realismo para nos envolver, mesmo quando era uma delirante fantasia, tudo ia bem, até que, por imperícia humana ou por defeito do filme (que pode ter sido causado pela mesma imperícia ou por seu natural desgaste), algo se dissolvia, fenômeno ampliado na tela gigante, emudecendo-nos a princípio, fazendo-nos, depois, irritados com a interrupção, soltar a voz, aproveitando-nos do anonimato da sala ainda apagada.



Ninguém, então, se afundaria na poltrona para fazer disso uma metáfora da instabilidade da vida: a vida vai correndo bem, ou já nos acostumamos à vida que corre a ponto de tomá-la por uma que corre bem; de repente (por imperícia nossa, eventualmente uma alheia a nós, mas, sobretudo, porque esse material de que somos feitos é mesmo precário), tudo se dissolve. E quem dera que Shakespeare fosse nosso Criador e, assim, de acordo com suas “escrituras”, fôssemos feitos de sonhos: porque até os sonhos devem ser mais resistentes, em sua fugidia eternidade, do que esse material que nos dá forma – quase sempre, uma forma aquém dos nossos desejos de perfeição.



O filme, dissolvida a fita, deixou um borrão na tela. No entanto, passado o pasmo silencioso do choque inicial, mesmo ainda tão inundados por uma escuridão protetora, as vozes não se levantam em coro de reclamações, quem sabe se porque cada um (de nós), ao seu próprio modo, percebeu que o silêncio é a única flor possível de ser lançada sobre esse fim inesperado.



Em silêncio, saímos todos. A sala, de novo, se pinta com a falta de luz que, curiosamente, é o que lhe dá vida. Os filmes, em sua versão antiga, precários, ou em sua versão pretensiosamente moderna, precários ainda assim, hão de continuar. Afinal, a vida, bem ou não, tem mesmo de correr.

quinta-feira, maio 01, 2014

O MAIOR IBOPE








e o rei – ou o imperador, ou o ditador, ou seja lá quem for que esteja com o poder nas mãos, quase sempre querendo mais – é morto, é preciso que seja logo reposto: e não faltam candidatos.

Aliás, na origem dessa palavra está, justamente, desde a velha Roma mandona, dominadora, expansionista, a ideia, tão romântica a nossos olhos contemporâneos, de que todo aquele, entre os aristocratas, que podiam pleitear isso, que desejasse uma função legislativa, deveria se vestir, devidamente “togado”, de branco, “candidamente”, como se a cor de suas vestes fosse uma segurança quanto à honestidade de suas intenções: pensando, agora, em nós, haja pó neste nosso país de sabão!

Ao saber, porque não é de hoje, nem começou conosco essa mania de passar as informações adiante – e naquela mítica Roma, herdeira pagã, em tanto, da velhusca Grécia, as notícias corriam velozes, nos pés, alados, de Mercúrio –, da morte de Júlio César, Marco Antônio, seu dileto “filho”, herdeiro provável de seu patrimônio político, quando ainda tão pouco se separava o público do particular (pouco avançamos!), crendo-se, entre outros que também pleiteavam a vaga, com legítimo direito ao poder, ora vacante, apressa-se (quase um Mercúrio, nessa hora) para chegar às escadarias do Senado, onde, por obra e graça de uma história que flerta com um bom folhetim – como se nossa vida real passasse muito disso, inclusive na pobreza de estilo, embora prefiramos (acreditar em) romances mais elevados –, o corpo daquele César, e não foram poucos os que Roma conheceu, e não são menos o que nosso mundo ainda gera, ainda fumegante, com os últimos calores de vida, que se esvaia pelos caminhos, verdadeiros atalhos, abertos pelas tantas punhaladas, entre as quais (não nos esqueçamos do quanto tudo isso cheira a novela), a que lhe doeu mais foi a de Brutus, mais por ser sua aquela mão, menos pelo que ela continha de potencialmente mortal.

Um no prego, outra na... Pois bem, Brutus também logo sentiria uma estocada – mas retórica. Ao chegar lá, Antônio já encontra todo o povo reunido, em torno, testemunhas mais de um escândalo diário do que cultores de uma história, como todos nós, quase sendo escorraçado por aquela mundéu, que aumentava a cada instante. Ao lado de Brutus, convencida aquela gente, já, do quão César era um traidor de sua causa – a popular – via em Marco Antônio, jovem e vivo (e muito!) o velho e morto César: fora com ele!

Espertíssimo, uma raposa, maculando eu, assim, o pêlo desse animal com uma prosopopéia que lhe é desonrosa, Antônio, tendo conseguido o respaldo de Brutus para fazer o que seria sua despedida do “pai”, começa deixando claro que também está do lado do povo, contra aquele morto, filho que renega a paternidade para se tornar, em seu delírio de poder, pai de todo o povo. “Eu vim para enterrar César, não para exaltá-lo”, ele diz, querendo e conseguindo não ir até o povo, mas trazê-lo todo para junto de si.

Na sequência – entre um intervalo e outro dessa novela, em que passa o novo comercial do sabão em pó e um ou outro candidato vestido de (terno) negro –, Antônio enumera as obras de César, sempre em favor do povo, daquele mesmo que está ali, ouvindo o vivo, pranteando o morto. E, com sagacidade digna(?) do melhor dos demagogos (no sentido grego da palavra, de saber “conduzir o povo”), acrescenta, a cada feito de César, como um leitmotiv, “Contudo, Brutus diz que ele [César] era ambicioso, e Brutus é um homem honesto”.

Não demora – terá sido obra de um Mercúrio, em seus melhores dias? – e o sentimento do povo, sentimental como é, por natureza de sua expressão em massa, se transforma e, ao fim, quando Marco Antônio finge desfalecer, todos já o aclamam, enquanto que Brutus, há léguas está, pronto para lutar, mas, certamente, não se perdoando a ingenuidade (política).

Mas Antônio tem de dividir o poder – e poder assim é o que há de mais perigoso, e não apenas para o povo. O império, com o poder em tantas mãos, corre o risco de se esfacelar de uma vez, levando junto terras a perder de vista, onde nem mesmo os olhos mais aguçados, do mais ambiciosos dos políticos, alcança. Brutus, a essa altura, nos arredores de Roma, suficientemente longe para ser alcançado por uma mão casual, arregimenta os que pode(m) (sem tanto poder(em), quase, efetivamente, nenhum), enfernizando a vida dos poderosos da hora com uma guerrilha (sub)urbana.

Aí, o capítulo, que já teve seus momentos mais emocionantes, não me interessa tanto. O que me arrepia ainda é o poder...das palavras. É o poder de alguém que sabe conduzir (o povo) pelas palavras. É o poder que se conquista à força...das palavras, embora exercido pela força das mãos (que escrevem as palavras) e já não pelas palavras em si, entrando, aí, estas apenas como um reforço retórico à brutalidade do poder.

Candidatos, hoje, vestem-se, preferencialmente, apesar de todo este nosso “tropicalismo”, de escuro, com ternos (eles até fingem alguma ternura) bem cortados, essas elegantes togas. Mas prefiro, eu, não ler isso como uma indiscutível verdade cromática, que, afinal, a vida não se resume a uma paleta, por mais rica e versátil, nos tons, que seja. Até porque eu passaria a olhar desconfiado para os que se vestem de branco total, atribuindo uma “Omo”nidade – e os que, ainda por cima (dos ombros), gostam de uma pele de raposa, por mais branca, se veriam maculados.

Fico com a beleza destas (e não falo das minhas) palavras, e ainda com a sensação de poder que me dá conhecê-las, mesmo que, como todo poder, por mais longevo que pareça ser o ditador, encontra, mais cedo ou mais tarde (infelizmente, muitos encontram bem mais tarde), no tempo, uma punhalada fatal.