domingo, fevereiro 03, 2008

BACANA, CHIQUITO!










Aurora, ainda que se teime em se dizer que as mulheres são de lua, não é dessas, mesmo que, ao dar as caras, a depender da estação, a depender do dia, ainda esbarre com uma lua, já não tão dona de si, quanto era, provavelmente, há pouco, uma lua em despedida, por mais cheia que aparente estar, resquício, certamente, de um brilho tardio. Aurora é deusa, filha da Noite, da qual não se sabe que tenha, por vaidade – característica que é mais sincera nas mulheres, não lhes sendo uma exclusividade – usado, alguma vez, esmalte nas unhas, mas que tem, isso é sabido, mesmo que não haja registros de imagem, até colhidos sem sua permissão (os que mais agradam, hoje em dia), dedos cor-de-rosa, como lhes pintou o poeta, rapsodo que não pode ser chamado, simplesmente, de manicure, inclusive porque suas histórias passaram ao largo dos dedos, indo adiante, varando épocas, de boca em boca, esse correio que é capaz de deixar a mítica eficiência de Mercúrio no chão, apesar seus conhecidos pés alados.

Menos conhecida, Aurora também é irmã de Carmem – e esta, se é não filha da noite, é deusa, a seu modo. Carmem, e isso não é nenhum mito insondável, ainda que muitas vezes a origem da língua que nos é tão cotidiana nos surja como um mistério insolúvel, é o mais puro latim: é canto, é poema, enfim, são versos e mais versos.

Não se sabe – eu, ao menos, não – que Carmem tenha cantado em latim, tendo, no entanto, para além do nosso português, com inconfundível sotaque de um Portugal que lhe era íntimo, sendo-lhe assim já de berço, cantado em inglês, ainda com sotaque, eternamente, inconfundível, notável, a distância, tendo ela ido tão longe, que, ao tentar, outra vez, aproximar-se, ouviram no seu jeito de falar, o mesmo ao qual se deram ouvidos, sem reclamar, pistas de uma deserção.

Aurora nunca foi tão longe. Aurora, todo madrugador não ignora isso, atende ao rigor do relógio, parecendo mais burocrática, com uma pontualidade que parece não ser atributo da arte. No entanto, Aurora, se não o assunto mais cantado, e não só em versos, deve estar no topo, como uma lua que nunca diz adeus, mesmo quando de dia, fazendo do (seu) próprio céu o único limite, quando se trata de musas inspiradoras, ainda que, com o tempo, mulheres com dedos cor-de-rosa, pela ingenuidade que isso transmite, possam ter saído de moda, dando lugar a um, algo suspeito, encarnado nas unhas.

Se há versos, então, há Carmem, e não estamos falando da mais famosa de todas: a Burana – versos de Beuren, música de Carl Off. Carmem, por seu lado, rendeu versos, mas rendeu, e ainda rende, muito mais prosa($), não tendo sido, contudo, tão longeva quanto Aurora: e esta, mesmo que já não (nos) desperte mais, mesmo que não a reconheçamos de ouvido, ainda que não (nos) fale com sotaque estranho ao nosso comezinho disse-me-disse, permanece, dia após dia, pontualmente, embora varie de horário, sempre na dependência dos caprichos machistas de um sol-absoluto, mostrando, poeticamente, suas garras, na forma de eternos dedos róseos.

Que vivam ambas! Que a aurora nunca se desvaneça! Que possamos a enxergar, mesmo em meio à bruma de um dia eventualmente menos claro! Que Carmem nunca seja esquecida, ainda que reduzida a um torso tutti-frutti. E que Carmem – os versos, os poemas – não morram jamais, apesar de, há muito, o latim ter-se contentado, fora do âmbito de anacrônicas cerimônias, seculares ou não, com as lápides dos que nutrem, ainda em vida, a esperança de serem eternos, quando não por méritos próprios, pela estranheza que causa o estranho sotaque dessas palavras finais: Requiescat in Pax!

No mais, sem passaporte falsificado, é continuar perguntando, sem saber o quanto isso é verso, o quanto isso é Carmem: “O que é que a baiana tem”?!



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