sexta-feira, janeiro 01, 2010

AFAGOS ÀS FADAS








ó não começo com o clássico “era uma vez...” porque isso poderia parecer conversa para boi dormir ou um conto de fadas para ninar um pirralho que ainda não conhece o sistema decimal para contar nos dedos de suas mãos uns tantos carneirinhos até seu sono chegar e, assim, interromper seus cálculos noturnos. Mas, há ainda uma outra razão: é que a fórmula, como um soco na cara, apesar do apelo quase caricioso de palavras tão nostálgicas, justamente por o serem, lançaria esta história para lá, no tempo, num lá demasiado lá atrás para que a contemporaneidade de exemplos, à mão cheia, permita ir adiante, interceptando a narrativa com o apelo – menos súplica e bem mais uma velada ordem, com verbo, excepcionalmente, conjugado, à perfeição, no imperativo afirmativo – a uma inspiração mais reconhecível nessas nossas modernas tramas em que homens não faltam, carecendo, no entanto, de feitos que nos redesenhem, apagando a desculpa de o sermos (tão humanos) para nossos erros, acentuando traços heróicos que talvez existissem, na origem, e que se perderam pelo mergulho mundano nas águas demasiado humanas.

Como, então, começar? Ora, de fato, já comecei: e isso me libera de começos mais solenes e, já estando próximo do meio, sem um cálculo preciso de onde esta história vai dar, posso fazer de conta, sem me voltar aos contos de fadas para bois dormirem, de que fiz o que devia fazer, prosseguindo com isto (aqui), com a consciência tranqüila de que não queimei etapas indispensáveis à compreensão do que se passa, aqui.

Alexandre (e se dele disser O Grande, isso seria como o soco que tentei, a todo custo, evitar), aquele que, como epônimo das coisas grandiosas de que um homem é capaz (aparentemente, só porque a história é curta demais para a interminável lista de anônimos necessários às conquistas), empresta, ainda hoje, em quem o traz na lembrança de uma epopeia que, lida, parece-nos inverossímil, seu nome ao “quase impossível”, recebeu, certa vez, uma carta, sem autor declarado, que o avisava do suposto suborno a que seu medido particular, Filipe, deixara-se submeter para, muito bem pago, envenená-lo, misturando, como remédio, uma droga letal a sua bebida. Cortar-lhe a cabeça soa previsível, se a história fosse de uma Rainha de Copas e não à virilidade de um homem dessa (sua) cepa. Enfim, não a cortou, pessoalmente, e como não era dos que mandam recado, também não mandou que a cortassem.

O que fez? Esperou – que talvez seja uma das maiores virtudes, e uma das mais desprezadas, dos grandes homens – receber, diretamente, das mãos de Filipe a tal bebida, suposto veneno, e, sem hesitar, sem que olhos que testemunhavam a cena presenciassem qualquer mínimo tremor em seus dedos, inquietação em seus olhos, palpitações anormais em seu peito, tomou a taça e, enquanto bebia todo seu conteúdo, fez seu medido, a seu lado, ler a tal carta que o acusava de ser autor dessa tentativa de assassinato.

Somos, é bem possível, acostumados às fadas (que renegamos, com o tempo) ou com as ruminações bovinas em cardápios pastoris (por nos sentirmos, vaidosamente, vã vaidade, urbanos demais para essas conversas fiadas), ávidos por uma (boa) moral, tomando até como mal contada uma história cuja moral não se extrai sem esforço, estando, então, tão á superfície dos fatos como desejamos encontrá-la, a ponto de ser suficiente os olhos para pescá-la, sem fazermos nisso tudo intervir a mão, porque os bons peixes, às vezes, vêm de águas perigosas, arriscadas demais para aí se meter o bedelho.

Essa história, de Alexandre, tem lá a sua moral, mas, provavelmente, a moral pertence mais ao próprio Grande do que, propriamente, à (sua) história, a essa que o tem por personagem, protagonista de um capítulo a mais em sua longa lista de desafios vencidos, durante uma vida tão curta. Alexandre, diga-se, não morreu naquele momento, porque sua bebida não estava envenenada, como afirmava o covarde remetente do aviso anônimo. Disse Alexandre – e quantos de nós podem(os) dizer o mesmo, com sinceridade, sem termos à mão um antídoto com efeito imediato? – que preferia morrer, mesmo tendo sido avisado dessa possibilidade traiçoeira, a duvidar dos seus amigos, como era Filipe.

Podem dizer, com risinhos covardes nos cantos dos lábios, essa é uma história para boi dormir. História como essa, verdadeiro sedativo para bois insones, há em todo campo, embora haja técnicas mais modernas de se encher os ouvidos de um rebanho (de insones), talvez rememorando fatos (muito) passados. Há contos, mesmo quando as fadas já não resistem à precoce destruição das fantasias infantis. Exemplos, hoje, carecem de heróis verossímeis, quem sabe se por não ser crível que haja heróis, simplesmente, essas figuras, agora, tão risíveis, quanto as fadas, e tão desconhecidas, quanto os bois para os olhinhos irrecuperavelmente urbanos.

Eis as palavras, num modelo que se assemelha a uma carta, ainda que lhe faltem certas características que torne o reconhecimento mais imediato como uma clássica epístola – e não é anônima, caso isso ainda não esteja claro: coisa só de mais algumas linhas, o que, por si, não me livra de ser chamado, a qualquer momento, de covarde. As (minhas) palavras são a bebida – quem sabe, uma “droga” (de palavras), talvez seja um remédio, ou um antídoto contra envenenamentos do olvido. Ardiloso, não te dei a escolha de ler, enquanto bebias, porque para lê-la(s) – carta, palavras – tiveste de bebê-las, uma a uma, todas as palavras, ainda que algumas tenham sido engolidas em seco, na pressa para acabar com isso.

Não prefiro, pequeno homem como sou, a morte a ter de esquecer os amigos – o que já revela mais um traço da minha covardia. Porém, se os esqueço, como se não houvesse escolha, isso é a morte de tudo aquilo que pode, ainda, fazer-me grande, ao menos, aos meus próprios olhos, nem que seja por uma data certa, e logo esquecida.

Sem mais, e não tendo coragem suficiente para me esconder no anonimato...






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