Especialmente para JOÃO CARLOS SAMPAIO

É, sim, uma Norma – e a maiúscula se justifica. É Norma Desmond. É uma velha mansão, dos tempos em que se subiu na vida; hoje, porém, imagem clássica do abandono, da descida, e tão rápida esta que se poderia dizer que se deu não degrau a degrau, mas, ainda pela escada, deslizando-se, sem empecilho no meio do caminho, pelo corrimão. A glória de um dia só resta, confundindo-se realidade e ficção, no nome: Glória...Swanson.
Esperteza a nossa em querer nos abrigar num monoteísmo em que o deus, o único, portanto, tendo sempre existido, jamais morre. Com mais deuses, apesar de um mundo mais animado, com intrigas que, olimpicamente, divertem nossa humanidade de leitores de folhetins, há o risco de um crepúsculo – também este uma imagem que não deve ser vista, por mais belos que sejam os pores-do-sol, como tal, mas como um rolar escada abaixo, ficando no chão só no caso de não haver nada de mais rasteiro.
Ensandecida, Norma, encastelada em si (o mais invulnerável dos castelos, ainda que igualmente o mais precário de todos), cede aos sedutores apelos de uma escada, não resistindo em surgir no alto, no mais elevado dos degraus, quando observada de baixo, pronta para descer, num ato, curiosamente, que representa (representar é toda sua arte, é toda sua vida) um retorno, uma espécie de subida, porque só os tolos ardem de desejo de subir as escadas, como se estivessem indo rumo ao paraíso, pois os mais sagazes, depois de terem chegado lá, ardem de desejo de aparecer, repentinamente, desde que com plateia garantida, no auge desse pódio, para, a seguir, com lentidão estudada, descer, marcando, assim, o ápice de sua ascensão.
E eu aqui, assistindo a tudo isso, no conforto de uma poltrona, como se aquilo não passasse de uma entre tantas ficções que animam de diversões nossos dias, na falta de uma co(o)rte de deuses vingativos, lutando entre si, mal percebendo o que vai a minha volta, na minha mansão de metáfora, no meu castelo de eus, com minhas escadas sem corrimão, mas nem por isso sem possibilidade de uma queda subida, essa silenciosa ascensão, mais rápida do que o rolar, degrau a degrau. Também eu me deixo seduzir, mas não por (a)parecer um deus, no alto, descendo, como se, magnânimo, concedesse, aos mortais ao rés do chão, uma chance de me terem por perto.
Quando surjo, e desço, alimento a fantasia de que, tendo estado tão no alto, lá embaixo, ao menos, vou conhecer os mais reles prazeres, lambuzando-me, sem medo de cair na sarjeta (que já está ali mesmo, no chão), sem temor de assim experimentar um crepúsculo, senão ao meio-dia de minha vida, ainda que às quatro e meia da tarde. Mas, vencidos, ao contrário, os degraus, encontrando-me no mais baixo dos patamares, descubro que se não bastou subir para ter acesso, imediatamente, aos subidos gozos, não é suficiente rolar pela escada para fruir do que a humanidade tem de melhor (ou de pior, a depender do ponto de vista).
Alguns homens fazem sua glória ao quebrar uma norma, mesmo que esta já se ache fissurada, bastando pouco mais do que um sopro para que se estilhace por completo – como se descessem escada abaixo, sob o ponto de vista dos legalistas; outros fazem a sua ao se apegarem, com uma literalidade empobrecida, às normas, não se permitindo engolir, mesmo que por descuido, uma letra (da norma) sequer – como se ascendessem, a cada obediência, um degrau. Eu permaneço no meio do caminho: tendo subido um lance, havendo outro ainda, descanso, já há quase uma eternidade, num patamar, sem saber, ao certo, qual o gênero da minha glória, se é que ela virá.
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